Glauciane, Graziela, Adriana, Gislaine, Luciana e Patrícia têm uma certeza em comum: não tem como superar a dor de perder um filho.
Nenhuma delas consegue esquecer o enjoo da gravidez, a barriga crescendo, o corpo inchando. E algo por dentro chutando. E as dores do parto, então, estão marcadas pela memória ou por cortes na barriga.
Elas aguardaram nove meses para se deitarem em macas de maternidades e sentirem as contrações que antecederam o nascimento. Lembram-se das dores e dos gritos. Do chorinho do bebê. Os seios cheios, os dedinhos, os olhos, a boca.
Tudo lhes vêm à cabeça quando relembram a biografia de filhos que terminaram deixados em cemitérios. Os bebês que engatinhavam pela casa, que mastigavam chupetas, que aprendiam a andar encostando nos móveis. Tudo para estas seis mãe é memória.
A dor de perder um filho
A menina de unhas pintadas
E foi num 19 de fevereiro que Glauciane Pires Silva deu à luz a Ana Clara. Ela não sabia, mas 7 anos depois, em 2017, a menina passaria o aniversário desaparecida.
Três dias adiante, Glauciane sentiu uma coisa que percorreu todo o corpo que nenhuma palavra define: como se algo rasgasse a carne. Recebia a notícia de um delegado de que o corpo da menina Ana Clara foi encontrado abandonado em uma mata. Tinha sido brutalmente assassinada. O corpo da sua bebezinha tinha sido violado e queimado.
“A dor é insuportável. O vazio é grande. Eu sofro demais quando acordo e lembro que não tenho mais a minha filha”, lamenta Glauciane, com o choro entalado.
Aos 25 anos, vive na mesma casa em que Ana Clara saiu para ir à vizinha quando não voltou mais. Nem para o velório.
A repercussão do desaparecimento e morte de Ana Clara foi tão grande que o corpo foi velado na escola em que a menina corria, de unhas pintadas e batom nos lábios, com as amiguinhas. Homenageada, aplaudida, recebeu cartinhas. Em uma delas, uma coleguinha desenhou uma borboletinha.
Para Glauciane, Ana Clara voou.
O menino vendedor de bombons
Rafael, de 11 anos, voltava para casa com o irmão de 15 quando foi atropelado por um carro antes de chegar do outro lado de uma das avenidas mais movimentadas de Anápolis em novembro de 2018.
Ao lado do corpo, a vasilha de plástico que a mãe, Graziela Ribeiro Barbosa, de 33 anos, preenchia com bombons. Chocolate, sangue e o grito do irmão misturados na Avenida Brasil.
Rafael queria ajudar nas finanças de casa e levou a ideia meses antes. “Mamãe, vamos fazer bombom para eu vender. Quero te ajudar.”
“Meu filho queria ser juiz. Falava muito em me ajudar, arrumar nossa casa.” Rafael, como lembraram professores no velório, era nota 10. “Um sonhador”, lembra Graziela, entre soluços, uma vez ao mês para a psicóloga que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece para ela tentar seguir vivendo.
“Tenho outros filhos. Preciso criar cada um deles”, diz. O irmão que brincou minutos antes com Rafael, viu ele sendo atropelado e a tentativa inútil de salvá-lo, nunca comentou a morte. Nem a vida. Mas às vezes é visto encarando a foto de Rafael na parede de casa.
Para os quatro irmãos e aos pais de Rafael, sobrou o sorriso de um sonhador emoldurado para sempre em um quadro.
“Queria estar enterrada com meu filho”
Luciana Pereira Lopes não desiste de cobrar que o Estado responda por que deixaram seu filho morrer queimado vivo.
Quando conversou comigo dois meses depois de enterrar Lucas Rangel Lopes, de 17 anos, Luciana me disse que o filho não tinha pé. “Todo queimadinho.
Lucas cumpria medida socioeducativo no Centro de Internação Provisória (CIP), instalado dentro do 7° Batalhão, em Goiânia, quando dois jovens colocaram fogo em um pedaço de colchão. Dez meninos morreram como você pode ler em uma reportagem especial aqui.
“Quando a gente descobre que está grávida, tudo muda. A gente aprende a viver com aquele ser. Ensina a andar, a falar. Quando perdemos, perdemos um pedaço de si. Não me sinto mais inteira”, diz.
Sem coração. É como Luciana se sente. “Enterrar um filho é como se eu tivesse me enterrado. Perdi a vaidade, minha alegria. Se eu pudesse, estaria com meu filho lá no cemitério, enterrada com ele.”
Uma filha dentro da caixa de papelão
Gislaine de Sousa de Oliveira Rezende, 45 anos, comunga da mesma sensação de Luciana: se sente como se tivesse sido enterrada viva. Ela é mãe de Géssika Sousa dos Santos, de 27, vítima de feminicídio.
O corpo de Géssika foi encontrado dentro de uma caixa de papelão, na Praça do Trabalhador, em Goiânia, no dia 30 de outubro de 2018.
Géssica foi encontrada por volta de 5h da manhã, amarrada com fios e enrolada em um lençol. Em vídeos que circularam pelo WhatsApp, a vítima, morta, foi vasculhada com pedaços de madeira por pessoas que passavam pela praça, a poucos metros da rodoviária de Goiânia.
“Não tive coragem de reconhecer o corpo, nem assistir o vídeo. Nunca mais vi minha filha porque o caixão foi lacrado”, contou Gislaine ao Dia Online na primeira entrevista depois da morte de Géssika.
“Se quer saber a sensação de ser enterrada vida? Basta enterrar um filho”, resume ela, que cuida das duas filhas de Géssika. Saiba os detalhes da vida de Marcos Cunha, que confessou o crime clicando aqui.
O jovem marceneiro
Antes de encontrar o corpo do filho, sem camisa, olhos semiabertos, no canteiro de uma avenida, Adriana Maciel não dava importância para mortes envolvendo conflitos entre bandidos e a polícia.
Para ela, “bandido bom era bandido morto”, ideia que ela sepultou junto com Wallacy Maciel, de 24 anos, confundido com ladrão na madrugada do dia 9 de setembro.
Foi a própria Adriana que foi atrás de provas para deixar bem claro: Wallacy foi assassinado duas vezes. A primeira, quando um soldado atirou sem dar chance de defesa ao filho e, depois, quando foi tratado como bandido. Drogas e armas, segundo imagens, teriam sido implantadas para justificar a morte do jovem.
“Perder um filho é a pior sensação do mundo. A alegria não existe mais. Nada no mundo substitui. Nada cobre. É mentira de quem fala que o tempo cura.” Adriana perambula por fóruns em busca de Justiça. Quer ver o policial que não apenas sepultou o filho, mas os sonhos dele, na cadeia.
O filho desaparecido de Patrícia
Patrícia Maria de Castro tem 38 anos. Desde o dia 23 de maio de 2017 administra um grupo com título: “Maycon (desaparecido)”.
Na medida que adiciona pessoas, outras saem. Fogem. Não suportam a obsessão de Patrícia de encontrar o filho, Maycon Castro de Paula, de 17 anos.
Ele deixou a mãe em Formosa, interior de Goiás, em janeiro de 2017, para procurar emprego em Roraima. Em abril, pegou a motocicleta de um criminoso conhecido da região em Seringueiras e nunca mais foi visto.
Patricia viajou duas vezes à região. O delegado que investigava o caso chegou a dizer que, se quisesse encontrar o filho, ela mesma deveria procurar. Em Brasília, tentou ajuda da Polícia Federal (PF). Nada.
Empregada doméstica, conseguiu doações de moradores e políticos de Formosa para viajar sozinha, onde encontrou gente mal-encarada.
Esta semana, recebeu a fotografia de um rapaz deitado no chão de uma rodoviária de Brasília. “Quero ir lá ver se é ele”, diz.
Para ela, perder um filho e não enterrar é ter a certeza de que ele está vivo. Pouco ou nada diferencia Patrícia das outras mães: ela se sente deteriorada a cada dia que acorda e não recebe ligações ou mensagens de Maycon, que preenche a timeline do perfil do Facebook dela diariamente com seus olhos azuis, rosto branco e cabelos claros.
Enquanto isso, Patrícia vagueia por ruas de bytes, olha sites que noticiam corpos encontrados em cada município do Brasil. Ao contrário de pessoas que tentam obrigá-la a sepultar o filho pelo menos mentalmente, ela cavouca com mãos de mãe a esperança de voltar a ver Maycon. “Ele vai me abraçar e dizer que me ama.”
Thiagão e Os Kamikazes do Gueto têm versos – na canção Todo Finado Tem Mãe” que descrevem como ninguém essa coisa que é perder um filho:
“Eu sei, que eu te fiz sofrer
E não, não consegui ser, o que você
sonhou
Sorrir, não te fiz sorrir, chorar, só te fiz chorar
Quando a morte me levou
O tempo é o melhor remédio, mas às vezes nem ele cura
A dor de quem perdeu, quem enterrou o próprio filho, truta
Nessas andanças, lugares onde passei
Foi raridade achar que não chorou por alguém
Quem não perdeu um amigo, que não perdeu um irmão
Quem perdeu um filho perdeu metade do coração
É procê vê né tia, seu filho morreu faz tempo
E as lagrimas não secaram, não acabou com o sofrimento
Nem vai acabar, não acaba nunca”