O início de 2019 tem sido de violência nas ruas de Fortaleza e no interior do Ceará. Em menos de duas semanas, já foram cerca de 200 ataques a prédios, viadutos e veículos, em pelo menos 43 dos 184 municípios do Estado. Ontem, criminosos atacaram uma torre de transmissão de energia elétrica e a polícia apreendeu 5 toneladas de explosivos. No total, 330 suspeitos, incluindo adolescentes, foram detidos pelos crimes.
A onda de vandalismo é liderada por facções criminosas, insatisfeitas com medidas de endurecimento do sistema penitenciário local. O aumento do rigor nas prisões é defendido pelo governador Camilo Santana (PT), que ordenou até a retirada de tomadas elétricas nas celas, para evitar o uso de celulares.
Para conter o vandalismo, mais policiais foram levados às ruas. Houve até escolta da PM para garantir serviços essenciais, como o transporte público e a coleta de lixo. Na madrugada de ontem, criminosos derrubaram uma torre de transmissão de energia elétrica no Anel Viário em Maracanaú, na região metropolitana. Houve relatos de oscilação de energia na área, o que a Enel Distribuição Ceará nega. Na capital, a polícia encontrou 5 toneladas de explosivos, prendeu cinco suspeitos e deteve um adolescente.
Força Nacional. Com a gravidade da crise, o Estado recorreu ao ministro da Justiça e Segurança, Sérgio Moro, que enviou mais de 400 agentes da Força Nacional. A chegada da tropa federal, na semana passada, reduziu o número de ocorrências, mas ainda não conseguiu acabar com elas.
A rotina da quinta cidade mais populosa do País, com 2,6 milhões de habitantes, é de medo, como contam as pessoas ouvidas na semana passada pelo Estado (mais informações nesta página). Comerciantes da periferia de Fortaleza receberam ordens de fechar as portas mais cedo.
A circulação dos ônibus da cidade foi afetada, com corte de até 30% da frota. Estudantes e trabalhadores que têm atividades nos municípios vizinhos precisaram se reorganizar para garantir a própria segurança.
Mas não foram só os moradores que tiveram de se adaptar. Por ano, o Estado recebe 3 milhões de turistas, muitos de fora do País. Há visitantes que, com a viagem planejada há tempos, decidiram manter o passeio. Mas evitam sair à noite ou circular de ônibus e não se afastam da orla da Beira-Mar, o cartão-postal da cidade.
Depoimentos
Dormimos duas noites no carro
Dulcineia Alves, comerciante de 58 anos
“Não costumo ver TV há anos e demorei a saber dos ataques. Comecei a ter medo na terça, quando teve ameaça de bomba no Hospital Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará, e o diretor liberou os funcionários mais cedo. Eles são os meus clientes, né?
Vi todo mundo indo embora, com medo de o prédio explodir: médicos, enfermeiras, funcionários e os pacientes do hospital. Naquele dia, o padre da capela do hospital me deu um terço de Roma, benzido pelo papa. Fiquei a noite inteira rezando – só nos resta rezar.
Ouvi sobre toque de recolher no bairro da Bela Vista, mas pensava que o governador ou a polícia tinha pedido para fechar o comércio. Minha filha disse: “Mãe, é gente do crime organizado que manda fechar. Se virem coisa aberta, tacam fogo”. Fiquei com medo de alguém tocar fogo no meu ponto. É minha vida, estou aqui há 30 e poucos anos. Não ia aguentar ver meu trabalho queimado.
Chegou quarta e abri só à tarde. Dois PMs ficaram fixos em frente ao hospital, mas à noite tive medo. Apaguei a luz do meu ponto, coloquei as roupas mais para perto.
Decidi dormir no carro com meu marido porque saio depois de meia-noite e tive medo de ir de carro para casa. Dormimos duas noites no carro. Só fui em casa de manhã para tomar banho. Ele ficou. O movimento caiu muito. Vendo quatro bolos moles por dia, mas só tenho vendido um. Pelo movimento baixo e o medo, não trabalho neste fim de semana. Segunda a gente vê o que faz”
Tem o estresse, mas é preciso estar alerta
José Carlos (nome fictício), policial militar de 32 anos
“O impacto (na vida) é total. A imprensa daqui não divulga até para não gerar caos, mas o primeiro setor a ser ameaçado foi a polícia, com risco de ataques a viaturas e contêineres onde ficam algumas unidades policiais, além do policiamento a pé e em geral. Homens que queriam destruir postes e uma viatura chegaram a trocar tiros há quase duas semanas. Mas contra mim, contra alguém que conheço, não aconteceu.
As ameaças fez nossa rotina mudar. Altero as rotas que faço para casa para o caso de estar sendo seguido. Eu trabalho em uma favela, vai que algum olheiro me persegue?
Tenho ficado estressado, é preciso estar mais alerta. Também tem a questão psicológica, de como o estresse altera a vida. É muito cansaço.
A rotina de trabalho mudou também. A gente estava trabalhando dentro dos ônibus por dez horas ininterruptas… Aumentou – e muito – a quantidade de horas de trabalho. Eu já tinha trabalhado cinco dias, fazendo o policiamento normal, e nas folgas que eu deveria tirar me escalaram para operação em ônibus. É estressante.
Tenho uma filha pequena e quando chego em casa tento esquecer o máximo que posso, mas a situação acaba refletindo, principalmente no sono. Você fica indisposto. Muda também a energia e a disposição para fazer as coisas. Acabo não tendo disposição física porque a questão mental estressa demais e o corpo não responde. De qualquer forma, ainda tento brincar com a minha filha, conversar com a minha esposa e com os meus pais. E como sou cristão, acabo fazendo também minhas orações.
Numa visão mais abrangente, é claro que há todo o esforço da gente, mas sei que é um momento ímpar da segurança pública do nosso Estado. Acho importante participar e contribuir de alguma forma. Sou servidor público e estou aqui para servir.
Espero que o Estado não dê um passo para trás, não desista. Este é um momento único para que se resolva logo esse problema e que todos – o cidadão, à polícia, o agente penitenciário – possam se sentir em paz. Porque é uma cadeia, né? Acaba atingindo a todos.
* Procurado, o governo disse que o período de descanso dos PMs é “bem maior do que o relatado” e que os agentes lancham e descansam antes de retornar aos coletivos.”
Encaramos e não nos arrependemos
Vera Torres, de 49 anos, gerente administrativa; Urias Castro,
de 50, eletrotécnico; Yasmin, de 18, e Thyago, de 15, estudantes
“Não temos saído à noite. Não ficamos mexendo no celular na rua, dando bobeira. Não andamos na periferia nem em lugares muito afastados da região da orla da Beira-Mar. No máximo, vamos até um shopping ou lugar mais fechado. Como viemos de carro de Petrolina (PE), onde moramos, optamos por táxi e Uber só se formos tomar bebida alcoólica. Mas, em geral, fazemos tudo com o nosso carro.
Pensamos em desistir da viagem, cancelar, mas havíamos comprado com alguma antecedência. Então, acabamos vindo. E só temos janeiro para viajar, por causa das férias escolares e do nosso trabalho. Era a oportunidade de estarmos juntos.
Resolvemos encarar e não nos arrependemos. Não presenciamos assalto nem nenhuma situação de violência, mas também estamos tomando bastante cuidado.”
‘Vida não para, mas é afetada’
Carolinna Sales, de 23 anos, universitária em Acarape
“A reitoria da Unilab (Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira) ficou receosa por conta dos ataques e, com os transportes cancelados, muitos servidores e alunos não puderam ir.
Para chegar à Unilab, que no Ceará fica nos municípios de Redenção e Acarape (a 60 quilômetros de Fortaleza), há opções de ônibus rodoviário e metropolitano, e as rotas foram diminuídas. Há também os que vão de ônibus particular ou van, e os donos das frotas não quiseram ir. Traduzindo: prejuízo para todos.
Perdi duas provas e uma semana inteira de aula, mas acredito que foi uma decisão sensata da reitoria decretar recesso. Não há condições de nos expormos na situação que está. Espero haver possibilidade de voltarmos na próxima semana.
Enquanto isso, a gente fica receoso e temeroso de sair de casa. Meu pai e meu irmão tiveram de trabalhar; minha irmã foi para a faculdade porque as aulas não foram canceladas. A vida não para por conta disso, mas é algo que afeta – e muito – a rotina de todos.
Você se sente impotente. A palavra principal disso tudo, além do medo, é a impotência de não poder resolver a situação e ficar refém da onda de ataques. Pensamos que está tão distante. Não está. Meu pai e a minha irmã estavam parados num semáforo, quando iam ao mercado, e viram um carro explodir no posto de gasolina. Poderia ter machucado alguém, ou os dois.
É como se a tristeza tivesse tomado de conta do nosso Estado. E isso é muito ruim.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.