Celebrado como um titã da indústria automotiva, o executivo brasileiro Carlos Ghosn ganhou fama ao unir, há quase 20 anos, a montadora francesa Renault à japonesa Nissan, salvando ambas da bancarrota. Aos 64 anos, exercia cargos importantes nas duas empresas. Sua vida mudou quando ele pousou em Tóquio, há quase um mês, depois de mais um voo intercontinental em seu jato corporativo particular: foi preso pela polícia japonesa no aeroporto e levado ao centro de detenção da promotoria japonesa, em Tóquio. Hoje, seus dias não são determinados pela apertada agenda de reuniões, mas por um toque de recolher. As luzes se apagam, invariavelmente, às 21h.
Assim como tem hora para terminar, o dia começa sempre às 7 horas, conforme as regras do centro de detenção Kouchisho. À exceção dos 30 minutos que todos os presos têm para se exercitarem, o executivo passa todo o tempo em uma cela de dez metros quadrados. Em vez de desempenhar várias funções, Ghosn – brasileiro, mas também cidadão francês e libanês – se divide entre apenas duas tarefas: traçar estratégias para sua defesa e ler livros do inglês Jeffrey Archer, conhecido pelos suspenses com títulos como Cuidado Com o Que Deseja e Só o Tempo Dirá.
Ao longo da última semana, o Estado conversou com fontes próximas ao executivo – uma delas definiu a situação de Ghosn como um “pesadelo kafkiano”. O executivo é acusado de deixar de declarar o equivalente a US$ 44 milhões. Ao chegar a Tóquio, no último dia 18 de novembro, foi interrogado por seis horas antes de desembarcar.
Após dois dias sob custódia policial, foi preso em uma investigação que teve a colaboração de seus colegas na Nissan. Foi destituído da presidência do conselho da companhia a poucos dias de uma reunião em que os termos da união com a Renault seriam rediscutidos. Ghosn defendia uma fusão “irreversível” entre as empresas, segundo o jornal Financial Times (a Renault detém pouco mais de 40% das ações da Nissan, enquanto o grupo japonês tem 15% das ações da francesa). O conselho da Nissan, porém, era contra essa fusão.
Antes saudado como herói no Japão por ter ajudado a salvar dois tesouros nacionais – a Nissan e, mais tarde, a Mitsubishi -, Ghosn foi formalmente acusado pela promotoria japonesa na última segunda-feira, 10. A acusação embutiu a prorrogação de sua detenção até a próxima quinta-feira, 13. Quem entende da legislação japonesa diz que a permanência do ex-todo-poderoso da Nissan atrás das grades promete ser longa. O advogado japonês Kengo Kashiwa, do escritório TMI Associates, que também atua no Brasil, disse ao Estado que é comum procuradores japoneses prenderem suspeitos para fazê-los confessar um crime. “Não é o que diz a lei, mas acontece na prática.”
Pessoas que conhecem o executivo, no entanto, dizem que os promotores terão de enfrentar um parceiro à altura nesse jogo de xadrez: Ghosn tem se mantido firme na posição de se defender sem confessar, já que garante não ter feito nada errado. Uma pessoa que já visitou o ex-presidente do conselho da Nissan diz que, se ele está abatido, não se percebe. Durante as visitas, que são feitas em uma sala envidraçada com alto-falantes – como aquelas dos filmes americanos -, ele manda recados à família e faz pedidos básicos. Para enfrentar o atual inverno japonês, solicitou cobertores extras, além dos livros de Jeffrey Archer, que preferiu às obras de autores brasileiros oferecidas inicialmente.
A família, até agora, não falou com Ghosn diretamente – uma de suas filhas, aliás, deixou o Japão logo após sua prisão. O executivo tem quatro filhos, de dois casamentos, que moram nos Estados Unidos e na Inglaterra. Caso não tivessem receio de sofrer represálias, no entanto, o sistema judiciário japonês permitiria visitas familiares. Os Ghosn tinham intenção de se reunir no Rio, onde vive a mãe de Carlos. O Natal em família, no entanto, foi substituído pela tentativa de tirar o patriarca da prisão.
Diplomacia
Por ser um rosto conhecido e representar interesses de grandes corporações, Ghosn acaba não sendo um preso comum. Seu caso mobilizou funcionários dos ministérios das Relações Exteriores do Brasil, da França e do Líbano. Sua maior chance de resgate deve ser da França. Uma intervenção brasileira por uma espécie de indulto, neste caso, não seria cabível, apurou o Estado, porque seu caso está seguindo os trâmites legais do Japão – o executivo recebe visitas constantes de um advogado japonês que assumiu sua defesa.
No caso da França, a situação é diferente: o Estado francês é sócio da Renault. O grupo francês tem apoiado Ghosn indiretamente, ao mantê-lo nos cargos que ocupava antes da prisão e ao afirmar, na semana passada, não ter encontrado nenhuma irregularidade em suas declarações de renda. Ainda não ficou claro, porém, se a França pretende partir para um confronto direto com o Japão.
Se ficar à mercê da Justiça japonesa, os números jogam contra Ghosn. O advogado Kashiwa diz que, embora a prisão preventiva tenha de ser prorrogada a cada dez dias, crimes relacionados à acusação principal podem servir de justificativa para mantê-lo preso por tempo indeterminado. E a taxa de condenação entre os acusados pela procuradoria no Japão é um desafio à resiliência de qualquer réu: supera a marca de 99%. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.