Durante anos a educadora sexual Raquel Malaghetta, de 26 anos, não conseguia deitar sem pensar que no dia seguinte tudo se repetiria. Bancos, lojas e prestadores de serviços ligariam para ela. E não tinha escapatória: sempre recebia ligações do conhecido DDD de São Paulo, muito familiar aos endividados.
De manhã, à tarde ou quando anoitecia, algum call center de cobrança ligaria para lembrar Raquel o que ela tentava esquecer: precisava quitar as contas que foi adquirindo sem qualquer controle nos últimos anos.
Um dia era o cartão de crédito que estourou quando viu um par de sapatos recém-lançados na loja, depois o Iphone, a conta do bar, a cabeleireira. O descontrole transformou a vida de Raquel em uma fuga.
“Eu fugia sempre. Pagava apenas quem me pressionava”, confessa ela, que não consegue explicar por que, mesmo morando sozinha desde os 15 anos, chegou aos 26 com uma dívida de R$ 60 mil. “Nunca tive dificuldades para ganhar dinheiro, mas sempre me endividei. Quando apertava, fazia alguma coisa para pagar. Mas voltava a ficar devendo”, conta ela.
O psicólogo e mestre em Psicologia Social, Handersenn Shouzo Abe, entende o comportamento da Raquel. Ele recebe diversos casos em seu consultório com pacientes que não conseguem parar de comprar. E, pior, não conseguem pagar. “Muitas vezes a pessoa quer preencher o vazio por uma questão emocional”, explica. “Como se comprar fosse uma gratificação.”
Ele acredita que pacientes com este perfil precisam ter consciência que o equilíbrio é a melhor saída. “Comprar não é o problema, problema é comprar o que não se pode pagar”, explica Shouzo em seu consultório, no 8º andar de um edifício, em Goiânia.
Como Raquel, este tipo de consumidor representa 55% dos “consumidores em transição”, ou seja, com consumo consciente, mas longe do adequado. É o que revela uma pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). O estudo avaliou consumidores de todas as capitais do país.
Ainda de acordo com os dados coletados na pesquisa, os consumidores pouco ou nada conscientes somam 14% de entrevistados. Apenas 31% podem ser considerados efetivamente “consumidores conscientes”.
Quando tudo começou
Aos 22 anos, Raquel adquiriu a primeira grande dívida com bancos: R$ 10 mil. Mesmo assim, abriu uma empresa. “Comecei errado, sei, mas a empresa deu certo e eu consegui quitar a conta.” Por sorte. Ela não havia adquirido nenhuma organização financeira e continuou gastando em investimentos que não rendiam muito na empresa e em sua vida pessoal.
Um dia, Raquel tentou ligar para os bancos. Ela queria negociar. Depois de horas, não aguentava mais esperar as mensagens eletrônicas que passavam de departamento em departamento. Desligou a ligação. Ela desistiu e continuou se endividando.
Pouco tempo depois perdeu o sono. Não conseguia mais sorrir e fugia das amigas porque as dívidas tinham chegado à monstruosa cifra dos R$60 mil. Raquel vivia apenas para pagar as contas básicas, fugindo dos cobradores enquanto os juros tiravam cada vez mais sua vontade de viver.
Também se lamentava de não conseguir nem mesmo passar um final de semana em Caldas Novas ou passear pelas calçadas de pedras de Pirenópolis. “Mas um dia me indicaram uma pessoa que poderia me ajudar. E deu certo”, comemora.
Na primeira reunião com o planejador financeiro pessoal, João Gondim, ela se assustou. Teria de abandonar o cartão de crédito e o cheque especial, pelo menos até pagar tudo o que devia. Aos 31 anos, João é um homem sorridente, de fala rápida e cheia de frases de efeito. “Mas que dão resultados”, garante ele (Veja os vídeos no final da reportagem).
“No primeiro momento, ele mesmo negociou algumas dívidas”, conta Raquel. Acostumado a organizar a vida de endividados, João enxerga em Raquel um exemplo de superação. “Em seis meses, ela conseguiu reorganizar a vida financeira, sanar algumas dívidas, elevar a autoestima e voltar a consumir, mas conscientemente”, se orgulha da aluna.
Perto de fechar o ano, Raquel tem perspectiva mais positiva que anos anteriores. Quer comprar roupas e sapatos novos para realizar o sonho de passar o reveillon na praia. “É o meu sonho e, com as dívidas encaminhadas, vou conseguir”, diz, otimista.
Tendência é que final de ano seja de mercado aquecido
O mesmo otimismo de Raquel percorre lojas em Goiânia, segundo o presidente do Sindicato do Comércio Varejista no Estado de Goiás (Sindilojas-GO), Eduardo Gomes. Ele reconhece que as vendas não devem superar muito as do fim de 2017.
“Percebemos que vai aquecer um pouco porque muitos consumidores tiveram a oportunidade de receber o PIS [Programa de Integração Social] PASEP [Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público]. Por isso, muitos quitaram dívidas e agora podem comprar”, explica Gomes.
Para ele, o 13º salário é outro fator importante. “Deve injetar dinheiro suficiente para animar o mercado, considerando aposentados e servidores públicos”, esclarece. “As pessoas pagam as dívidas e consomem.”
Raquel voltará às compras, mas sem cartão de crédito. “Vou comprar à vista”, diz, enquanto pousa para a câmara em uma loja no Setor Bueno, em Goiânia. “Reconheço que ainda estou me reeducando porque ainda enfrento as dívidas. Me sinto melhor após superar esta etapa. Antes de decidir negociar e pagar tudo, me sentia frustrada por cada centavo que eu devia”, conta.
Dados da Camara dos Dirigentes Lojistas de Goiânia (CDL Goiânia) mostram que o mês de outubro fechou com média positiva em relação ao número de exclusões – quando endividados quitam suas dívidas. A diretora executiva da CDL Goiânia, Alexandra Lima, comemora os números.
“O número de exclusões é importante porque as pessoas pagaram as dívidas e voltaram a ter crédito.” O dado é mais positivo ainda, salienta ela, pois ainda não saiu a primeira parcela do 13º salário. “A tendência é aumentar, ou seja, o comércio deve vender mais e estamos muito animados.
Alexandra recomenda que o melhor é procurar a negociação. “No site da CDL, existe o negociador online, onde a pessoa pode conseguir uma saída para a dívida.” Para ela, o consumidor também precisa procurar o lugar onde ele está sendo acionado para que o nome e o CPF sejam tirado do SPC.
Cuidado, cuidado…
Para o professor da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e psicólogo Wadson Arantes Gama, muitos consumidores compram para aliviar uma angústia. “Ele compra, compra, compulsivamente e se arrepende. Ele tem necessidade. São questões internas. Mas é possível compreender isso e negociar, primeiro consigo mesmo, depois para pagar”, assinala.
Para José Vignoli, educador financeiro do portal Meu Bolso Feliz, iniciativa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), para que a pessoa volte a consumir, ela precisa pagar a dívida. Ele alerta, contudo, para que o consumir aprenda com o erro.
“É muito comum a pessoa acertar e depois voltar a consumir como antes. A pessoa precisa rever que tipo de controle tem feito no consumo, a questão falta de organização. Ela precisa anotar, conferir, examinar. A pessoa não tem controle e, quando vê, está pagando juros e com contas atrasadas e tudo vira uma bola de neve”, esclarece Vignoli.
Ainda segundo ele, o excesso de parcelamento e compras impulsivas demonstram a forma com que o consumidor está lidando com o dinheiro. “O cartão de crédito sempre aparece em primeiro lugar nas estatísticas de endividamento. Mas o cartão de crédito não é culpado”, pontua. “Se essa dívida não é paga, não é culpa do cartão.”
José Vignoli alerta para taxas de juros que pegam consumidores desprevenidos. “Se eu sei que o banco cobra taxa absurda, tenho que tomar cuidado. As pessoas costumam não ter controle. É preciso saber o quanto está gastando e se é possível pagar.” Ele não acredita que cartões sejam vilões e precisam ser quebrados.
“O cartão de crédito é fundamental. Todo consumidor tem cartão de crédito, principalmente de classe C. Com a crise, as famílias se endividaram e isso contribuiu para a queda do consumo. Depois veio o desemprego. E a instabilidade política contribui para a queda das vendas. Mas com um cenário otimista, as pessoas acreditam que podem consumir e que vão poder comprar”, finaliza, sorrindo.
Raquel, que não é boba, optou pela educação financeira. “É a melhor forma de ser a pessoa mais feliz do mundo.