No começo dos anos 1990, o pesquisador Miguel Monné cumpria uma agenda rigorosa aos fins de semana. Ele ia até a casa do amigo Carlos Alberto Seabra na Praia do Flamengo e cuidadosamente transferia besouros, abelhas, gafanhotos e percevejos da coleção do médico apaixonado por insetos para caixas que seriam levadas para o Museu Nacional.
O trabalho levou três anos, rendeu a Monné calos nas pontas do polegar e do indicador – que ele gosta de mostrar, lembrando a árdua tarefa de puxar e espetar os alfinetes em cerca de 1,5 milhão de bichos – e foi o que deu impulso para que a coleção de entomologia do museu carioca se tornasse uma das maiores da América Latina.
Atualmente com cerca de 5 milhões de exemplares, representava um quarto dos 20 milhões de itens abrigados no museu. A coleção estava em sua maior parte em dois armários compactadores dentro do palácio que sucumbiu com o incêndio no dia 2. Há pouca esperança de que algo tenha se salvado.
Talvez um pouco menos da metade da coleção era de besouros – cientificamente chamados de coleoptera, a especialidade de Monné -, muitos coletados por ele. Agrônomo de formação, o pesquisador uruguaio, hoje com 80 anos, se especializou em zoologia e em taxonomia. E foi no Museu Nacional, onde passou metade de sua vida, que ele fez carreira.
E herdeiros. Suas duas filhas se formaram em Biologia e a mais nova, Marcela, de 47 anos, é hoje curadora da coleção de coleoptera. Foi ela que conversou com o Estado sobre como a história do pai e de sua família se mistura à do museu. Ainda abalado com o incêndio, Monné não está atendendo à imprensa, mas já pensa com Marcela em planos para continuar.
“É um sentimento de luto, de tristeza profunda, com um pouco de raiva. Não é só nosso local de trabalho. É um patrimônio do Brasil. Tínhamos o privilégio de estar lá todos os dias”, conta Marcela. “Ele me disse: ‘Eu tenho 80 anos, minha preocupação é com a nova geração, que tinha possibilidades incríveis de estudo nesse acervo e que agora se perdeu”, afirma. “Ele sente muito pelo trabalho da vida, mas considera que não era algo dele, era para todos, para a ciência.”
Tesouro
Foi nas pesquisas feitas com a ajuda da coleção, explica Marcela, que se descobriu, por exemplo, que cerca de 30% das espécies animais que existem no País são de besouros. “A coleção tinha espécies ameaçadas de extinção e exemplares que o professor Monné e Seabra coletaram em locais que hoje estão devastados, não existem mais como matas. Tem cidade em cima. No museu tinha material coletado há 50 anos. É um registro histórico único”, diz a pesquisadora.
Muitos exemplares armazenados ainda não tinham nem sequer sido identificados. “Não só de besouros, mas também de outros grupos. Poderiam ser algumas milhares de novas espécies para a ciência.”
A grande preocupação de pai e filha agora é conseguirem, com a comunidade científica do museu, se reerguer. “O que precisamos é de um prédio próprio seguro, para poder continuar realizando nossas pesquisas.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.