Muito comum na prática artística como uma espécie de diário visual, bloco de notas, ideias e impressões ou mesmo suporte para teste de materiais e técnicas, o caderno de artista registra o exercício da experimentação e do aprendizado cotidiano. A partir desta perspectiva e com curadoria de Dalton Paula e Melissa Alves, é que o Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes participa da 36ª Bienal de São Paulo, intitulada Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática.
Com a instalação “Sertões”, o Sertão Negro leva uma proposta expandida do caderno de artista, que articula obras de artistas, colaboradores e residentes com objetos e registros da comunidade quilombola kalunga.
Porém, se geralmente esse registro da trajetória do artista é resultado de uma ação individual e íntima, nesta instalação o caderno de artista ganha uma dimensão coletiva, que acolhe obras e ações de artistas, colaboradores e residentes do Sertão Negro.
“Ao serem questionados sobre o que é o Sertão Negro, os artistas, a partir de suas diferentes óticas, produziram estudos que o representam, cada um à sua maneira. Assim, o caderno de artista expandido aqui apresentado se inscreve no mundo em um gesto de partilhas múltiplas, como quem define os muitos sertões possíveis”, destaca a curadora Melissa Alves.
Ainda neste movimento de pensar o fazer artístico indissociável das vivências e práticas cotidianas, é que a instalação contempla também objetos e registros visuais e sonoros da comunidade quilombola kalunga.
As fotos, do acervo da Fundação Cultural Frei Simão Dorvi, datadas em sua maioria dos anos de 1980/1990 apresentam atividades de trabalho, formas de sociabilidade, elementos relacionados à arquitetura, manifestações religiosas, além de expressões culturais deste que é o maior território quilombola em extensão territorial do Brasil, no qual se inicia o programa de residência artística do Sertão Negro.
Destes registros, vale destacar os áudios gravados com lideranças, guardiões e mantenedoras da tradição e da cultura quilombola kalunga, como Deuselina Maia, Sirilo dos Santos Rosa, Teresa Bruno, Manuel Deltrudes e Procópia dos Santos Rosa, que lutaram pelo reconhecimento do sítio histórico patrimônio cultural Kalunga; e estiveram a frente de vários movimentos em busca do processo de regularização fundiária do território.
Tais anciãos e anciãs têm um papel fundamental na mobilização dos mais jovens, na luta pelo desenvolvimento da comunidade, e principalmente na continuidade de tradições, como as festividades e romarias de Nossa Senhora do Livramento, Nossa Senhora d’Abadia e São João. Com procissões, cantigas, danças e rezas se fortalecem laços de pertencimento, se reafirma a ancestralidade negra e quilombola.
São esses fundamentos e valores estruturam a missão do Sertão Negro, espaço multidisciplinar que reúne artistas, mestres, professoras, residentes, assistentes, arte-educadores e outros colaboradores; e em Goiânia, no centro do país tem construído uma formação artística em diálogo com o bioma cerrado e com comunidades tradicionais, operando assim uma ação política de lutar contra os apagamentos históricos e artísticos e, ao mesmo tempo, festejar e propor futuros possíveis baseados em cuidado, afeto e dignidade.
Na 36ª Bienal de São Paulo, o Sertão Negro se apresenta enquanto coletivo, enquanto ateliê-escola que enxerga o fazer artístico como processo, como fazimento. Isso está no conjunto de obras, registros visuais e sonoros, estudos e objetos; e também na parede de barro, que inspirada na taipa de mão (técnica tradicional de bioconstrução) envolve e integra o espaço-obra, que faz uma espécie de interpelação: como falar da terra, sem moldar o barro?
A instalação “Sertões” como um todo, a programação pública do espaço com várias ativações e principalmente, a participação de artistas, mestres, professoras, residentes, assistentes, arte-educadores e outros colaboradores se coloca como uma presença que reflete a complexidade de um espaço que é, ao mesmo tempo, ateliê-escola, residência artística, comunidade e horizonte.
Mais sobre o Sertão Negro
O Sertão Negro é uma proposição estética e política, uma iniciativa que tensiona fronteiras – entre arte e vida, entre comunidade, autonomia e organização coletiva, pertencimento e deslocamento.
Fundado pelo artista visual Dalton Paula e pela professora de cinema Ceiça Ferreira, o projeto se inscreve como um território de criação que respeita a individualidade dentro de uma atuação conjunta, na qual a arte não se restringe à produção de objetos, mas se desdobra em um modo de habitar o mundo.
Sediado em Goiânia, o Sertão Negro abriga um ateliê, residências para artistas nacionais e internacionais, sessões de cineclube focado nos cinemas negros, aulas de capoeira angola, gravura e cerâmica; além de uma cozinha ativa, hortas, jardins e viveiros que não são apenas metáforas de resistência, mas instrumentos concretos de busca por soberania e autodeterminação, evocando práticas quilombolas e de resistências indígenas, de antes e de agora.
Ali, cultivo e criação se entrelaçam, tornando as noções de cuidado e continuidade em mais que palavras: o que se planta no Sertão é um modo de fazer e de pensar que transborda para além de seus muros.
Formado por mais de quarenta pessoas – incluindo artistas residentes, pesquisadores, cozinheiras, arte-educadores, estudantes, curadoras e integrantes do Sertão Verde, núcleo voltado à agroecologia e à soberania alimentar –, o grupo promove debates e trocas de experiências em meio a um modelo alternativo de intercâmbio, em que os processos, sempre múltiplos, importam tanto quanto a produção artística em si.
A base do projeto está fincada nos quilombos e nos terreiros – espaços de resistência e conhecimento –, bem como nas técnicas ancestrais de construção e nos saberes da terra.
Serviço: Sertão Negro na 36ª Bienal de São Paulo
Quando: 6 de setembro de 2025 – 11 de janeiro de 2026
Onde: Térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque Ibirapuera, São Paulo
Entrada: Gratuita