Quem vê a paradinha assim, em frente a um dos sebos mais conhecidos do Centro de Goiânia, na Avenida Araguaia, nem imagina como ela é aventureira. Por, ao menos, três décadas exerceu a função de geladeira, de fato. Quase virou sucata. Foi salva pelo investimento de 100 reais de um livreiro, também estudante de Ciências Sociais, de 55 anos. Se transformou em Geladeira Cultural, mediando doações e retirada de livros. E se você vislumbrou dias mais pacatos para ela, depois desta grande reviravolta da vida de geladeira em fevereiro de 2020, enganou-se!
Talvez essa história desse até um livro. Todavia, já tem um diário, escrito pelo Paulo Cesar de Oliveira Assunção, o PC Avalon. Foi ele quem resolveu montar esta Geladeira Cultural. A inspiração veio de outra geladeira grafitada e com a mesma função, a de doar livros a quem queira ler, localizada no prédio da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). No dia 26 de dezembro de 2019, depois de já conhecer a geladeira da faculdade, passou em frente a uma entidade filantrópica e viu uma antiga geladeira à venda.
“Vou comprá-la e farei o mesmo que aquela geladeira da (Faculdade de)Letras!”, planejou. Demorou mais do que o esperado para retirar o motor e fazer as adequações necessárias para fixá-la na parede do prédio da livraria Hocus Pocus, onde Paulo mantém uma sala e comercializa livros on-line. Porém, três meses depois da compra, estava pronta, uma nova Geladeira Cultural.
Assim, Paulo conta que “o objetivo da geladeira é divulgar a leitura, fazer com que esse hábito chegue àqueles que não tiveram acesso aos livros.” O livreiro também gosta de pensar que “esse objeto recheado de histórias, de encantamento, de conhecimento” é capaz de “engatilhar um gosto, um hábito, um ‘vício’ pela leitura” em qualquer passante.
Quem lê os livros da Geladeira Cultural
Apesar de querer atingir a pessoas mais vulneráveis e sem acesso à literatura, preza-se pela democracia. “A pretensão é atingir o público que não tem acesso aos livros, mas isso não impede que, os que têm acesso, possa pegar um livro também. A geladeira é democrática, quem quiser pegar livros, pega e quem quiser doar livros, doa”, afirma Paulo.
E mesmo sem controlar quem deixa e leva livros, pela observação, é possível mensurar que as doações são feitas majoritariamente por pessoas de classe média, que geralmente “chegam de carro, abrem o porta-malas e recheiam a geladeira de livros”. É comum, segundo Paulo, se deparar com títulos “da moda”. Ou seja, best sellers sempre fazem uma visitinha a Geladeira Cultural. Por sua vez, os leitores, que levam os livros para casa, são “jovens e vovozinhas, que querem levar livrinhos infantis para os netinhos.”
Obviamente, este exercício de monitorar doações e aquisições é limitado ao tempo disponível para fazê-lo. A Geladeira Cultural fica em contato com o seu público o tempo todo, todos os dias. Assim, neste ínterim de solitude, em que ninguém observa, é que as coisas mais inusitadas acontecem.
Uma quarentena com vandalismo e solidariedade
Por causa da pandemia do coronavírus, a livraria onde fica a Geladeira Cultural, teve que fechar as portas para a quarentena. E a geladeira também viveu o seu isolamento. Como medida preventiva, os livros foram retirados, porque poderiam ser um vetor da Covid-19. E então, em julho, com suas prateleiras ainda vazias, vieram os piores dias. A Geladeira Cultural teve o interior de sua porta destruído. O caso repercutiu na internet pelas redes sociais da Hocus Pocus.
Já consertada e de volta a rotina habitual, a geladeira pôde ajudar a espalhar solidariedade. “Certo dia, cheguei para trabalhar e vi que a geladeira, além de livros, tinha algo que me emocionou. Uma alma boa passou por ali e deixou alimentos”, contou Paulo. À tarde, no intervalo em que foi ao correio enviar os livros que vendeu, os mantimentos já tinham sido levados.
O leitor e livreiro que inventou esta geladeira
O Paulo, que criou esta, que é uma das geladeiras com livros espalhadas por Goiânia, foi uma criança que queria ler, mas em casa só tinha acesso ao livro didático e à Bíblia. Leu “Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos, aos 10 anos na escola. Se lembra que este foi o primeiro livro e que a escola permitiu que conhecesse vários autores que ainda admira. Na adolescência, já trabalhava e com parte do dinheiro comprava livros em sebos. Gostava de comparar livros e suas versões para o cinema. Hoje, ele vive dos livros. “Me sinto um Don Quixote lutando contra os moinhos de vento da ignorância”, confessa.
A disputa com os eletrônicos é árdua, porque, segundo ele, a tecnologia é uma facilitadora do conhecimento e, ao mesmo tempo, da futilidade. “Como amante dos livros e da boa leitura, me sinto no dever de salvar algumas almas, facilitando o encontro entre a pessoa e o livro”, afirma. E a geladeira é uma das ferramentas dele para essa batalha pessoal. “Para mim, a boa leitura, é um ato revolucionário!”