Faz alguns dias me senti entrando em um mundo paralelo. Um senhor abriu as portas de um antigo hotel desativado no Centro da cidade para me apresentar as dependências. Estranhamente, tinha bisbilhotado por lá fazia pouco tempo. Não havia nada. Como se fosse um cenário pensado pra mim, o abrir de cada porta precedia uma surpresa. Parece um conto fantástico, mas aconteceu numa das tardes de quinta-feira de julho no Grande Hotel, em Goiânia.
Em tempos de digitalização da vida, admiradores de arquitetura antiga declaram seu amor pelo passado por meio de fotos em redes sociais. “Licença, moço. Posso fotografar esse piso?”, disse adentrando a porta central do Grande Hotel. “Claro”, ouvi em resposta. “Você não quer visitar o Hotel?”, convidou o homem de cabelos grisalhos em processo de escassez que conversava com o porteiro, tirando os braços apoiados no balcão e mostrando-se amistoso.
“Mas tem algo funcionando aqui?”, indaguei com a segurança de quem estivera no local semanas antes, ainda com a informação dada pelo rapaz que ocupava o hall naquele dia muito fresca na mente: “Aqui? Só tem um depósito de cones da SMT (Secretaria Municipal de Trânsito, Transporte e Mobilidade).” Sem pestanejar diante do gesto de “siga-me” ou dizer quem eu sou, estava eu subindo as escadas, caminhando por um chãozinho quadriculado e debruçando-me sobre o parapeito da varanda.
“Vamos ali. Tem algumas salas de pesquisa sobre a história de Goiânia”, me guiava Tião Arroz, coordenador do Grande Hotel. Passei em meio a cadeiras que recebem estudantes para aulas teóricas sobre dança e teatro (estavam de férias) e me vi cercada por armários e indicações de seus conteúdos. Livros e documentos sobre a cidade. Nas paredes, dois grandes painéis com fotos panorâmicas. Não havia data, mas só de observar pontos turísticos dá de colocar ao menos 20 anos na conta. A capital já mudou muito.
No segundo andar, a luz pelas frestas das janelas deixava a sala linda. De repente, uma das figuras mais incomuns que já conheci. Um professor de violão, que cobra mais barato de quem faz aulas no Hotel, logo atrás de quadro branco utilizado como divisória. “Cobro 50 reais. Fora daqui, é 150 reais.” Tirou do bolso a carteira que comprova ser jornalista, também é estatístico. Em algum momento, acho que entendi que ele foi espião. Além disso, taquígrafo. Bastante coisa numa pessoa só.
Tião foi cuidar da vida. Deixou-me lá com Waldir Luiz. Por um bom tempo tentou me convencer de que um curso de taquigrafia é um ótimo negócio. Coleciona aprovações em concursos públicos. Até pareceu bom. Só não é mesmo minha praia. Ao falhar na arte do convencimento, mostrou dotes de numerologia. Calculou características da minha personalidade pelo meu nome e data de nascimento. “Você tem boa mão para plantas”, afirmou. “Só se for cactus, Waldir. Sou péssima com planta”, respondi. “Tem alguma coisa errada aqui. Qual é o seu signo?”, continuou. Por fim, quis que eu cantasse.
“Não posso mais ficar. Minha Área Azul (bilhete de estacionamento) já venceu. Eu posso ser multada”, expliquei em vão, notando que o Hotel é sim uma base da SMT e que todos os agentes estavam na rua. Tião insistiu em tocar alguns acordes, testar minha inexistente habilidade musical. Fiquei mais um pouco por curiosidade. Para ver o que mais aquele lugar me reservava. Talvez valesse a multa, mas eu rezava para não ter qualquer imprevisto para o orçamento do próximo mês.
“Nunca se esqueça, nem um segundo, que eu tenho o amor maior do mundo. Como é grande o meu amor por você”, Waldir cantava. Eu balbuciava a canção, eufórica para iniciar a correria. Tropeçando pelas escadas, agradeci Tião pelo passeio. Sai correndo pela Avenida Goiás. Cruzei a Avenida Anhanguera. Faltavam alguns quarteirões da Rua 4. Ilesa, cheguei ao carro. Aliviada. Sem multa. Fui para casa com a sensação de que as oportunidades escolhem as pessoas, mas sem a certeza de realmente ter vivido. Talvez as fotos bastem para convencer a todos.