Estreado na quinta, 20, Asako I e II, do japonês Ryusuke Hamaguchi, veio fechar a santíssima trindade dos grandes filmes estrangeiros do ano com outra produção asiática – Em Chamas, do sul-coreano Lee Chang-dong – e Roma, do mexicano Alfonso Cuarón. Havia dois filmes do Japão na competição de Cannes, em maio. O júri presidido por Cate Blanchett premiou o outro com a Palma de Ouro – Assunto de Família, de Hirokazu Kore-eda, também pré-indicado (na shortlist) para concorrer ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira. Por mais qualidades que tenha o Kore-eda, Cannes premiou o japonês errado.
Asako I e II fornece, numa duração standard, o que se pode definir como dois em um. Dois filmes. A primeira vida de Asako, em Osaka, inclui a descoberta do amor e a união com Baku. Conhecem-se e, imediatamente, já estão apaixonados, como se fossem almas gêmeas. Um amigo a adverte de que aquilo não é natural e não vai terminar bem, mas Asako não liga. Antes tivesse ligado. Baku, do nada, diz que vai ali e já volta, e some. Traumatizada, Asako vai para Tóquio viver sua segunda vida. Novo trabalho, novo amor, com um clone perfeito do primeiro companheiro. No princípio, o que a atrai é a semelhança física e Ryohei surpreende-se com a intensidade da aproximação de Asako, que não lhe fala desse primeiro amor (nem de quanto são parecidos). Unem-se, de novo tudo parece perfeito, mas a garota descobre, via TV, que Baku se transformou numa celebridade.
Ele volta à vida dela, desestabiliza o aparentemente reestruturado. O segundo casamento implode, as coisas não vão bem no rearranjo do primeiro. E tem ainda um gato que some – evocação, quem sabe?, daquele outro que Audrey Hepburn, como Holly Goolithly, também perdia em Bonequinha de Luxo, a comédia romântica sofisticada clássica de Blake Edwards. Hamaguchi tornou-se conhecido no Ocidente com um filme de cinco horas, Happy Hour, no qual a vida de um grupo é vista segundo diferentes pontos de vista. Se não muda totalmente o ponto de vista, as mudanças na vida de Asako são suficientemente fortes para compor dois relatos temporais e espaciais. O tempo da juventude e o da maturidade. O da euforia e o da desesperança. O do desencontro e o do reencontro. Hamaguchi parece trabalhar com códigos tradicionais, mas, na verdade, ele está sempre colocando em xeque, e subvertendo, esses códigos. É um observador arguto do comportamento humano – da alma humana. Quem é essa Asako, quem são seus homens? O que representa essa dupla face de um mesmo homem? E o amor, o que é?
Asako ama Ryohei ou o utiliza para superar a frustração passada? Não resta dúvida que vários indícios apontam que ela continua obcecada por Baku, e por isso a volta dele tem esse impacto – na vida de Asako e no relato. Existem filmes que parecem simples, mas não são, e Asako I e II é um deles. Em Cannes, as conversas entre jornalistas apontavam sempre para as mesmas conclusões. Hamaguchi é um cineasta na tradição da nouvelle vague, o movimento que revolucionou o cinema francês – e mundial – na segunda metade dos anos 1960. Como o sul-coreano Hong Sang-Soo, Hamaguchi é cria de Eric Rohmer. Seu cinema é dialogado, moral e os acasos – do destino e da existência – tumultuam as vidas de seus personagens. No caso específico de Asako I e II, é como se Rohmer, coautor, com Claude Chabrol, de um livro sobre o mestre do suspense, estivesse (re)fazendo a sua particular versão do genial Vertigo/Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock.
Só para lembrar – James Stewart, como Scottie, apaixona-se por mulher que deve seguir. Ela se mata, ou assim parece, e ele cai na depressão. Ao descobrir outra mulher muito parecido, ele esculpe, nessa outra, a anterior. Faz com que ela volte de entre os mortos, que é como se chama o livro da dupla Boileau e Narcejac em que se baseou. No final, descobre-se que era tudo um plano de assassinato, no qual Scottie foi envolvido para encobrir o crime. Hamaguchi não chega a tanto, mas sua inversão de gênero – uma mulher no lugar de James Stewart, a admirável Erika Karata – faz com que Asako seja vítima de si mesma, no duplo envolvimento com os personagens de Masashiro Higashide.
A questão chegou a ser levantada na coletiva de Asako I e II, da mesma forma que o tema que atravessa a obra – o verdadeiro amor. Nesse sentido, Asako tem algo da Bathsheba Everdene criada pelo escritor inglês Thomas Hardy em seu clássico Longe deste Insensato Mundo. (O livro foi filmado duas vezes – por John Schlesinger, com Julie Christie, nos anos 1960, e por Thomas Vinterberg, com Carey Mulligan, em 2015). Bathsheba casa-se com um homem e é atraída por outro, até descobrir que o verdadeiro amor sempre esteve a seu lado, representado por um terceiro sujeito. Baku, ou Ryohei? E, por que, numa era de afirmação de heroínas feministas, Asako precisaria desses homens para se afirmar? Numa cena que evoca o terremoto de 2011, as pessoas são separadas no caos e sua eventual reunião equivale a uma revelação – em épocas de dificuldades, todos precisamos de apoio
Mas o filme se encerra por uma nota mais ambígua. Um, o outro, ou os dois? Hamaguchi filma as águas que não param de fluir no canal – a vida que vem, os sentimentos. Um grande filme.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.