Em O Segredo e Seu Contrário, texto inédito no Brasil do escritor italiano Claudio Magris, publicado agora pela serrote #30, o autor analisa como conflitos entre custódia e violação de “segredos” são uma força motriz poderosa da sociedade – mas também das relações pessoais.
Clássico humanista europeu, defensor de liberdades e ficcionista vigoroso, autor de entre outros, Danúbio, Magris diz estar preocupado com os rumos da política mundial – mas não isenta a si próprio, e o seu grupo de colegas intelectuais, de alguma parcela de culpa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele elabora um pouco mais sobre as relações do segredo (e da relativização da verdade) com o estado atual das coisas.
Como essa noção de segredo que você propõe está sendo usada por movimentos populistas ao redor do mundo?
No meu livro procuro falar da relação entre a necessidade de dizer a verdade e o respeito para com os outros que nos induz a não dizê-la ou pelo menos nos inquieta. Está escrito no Evangelho que a verdade liberta; por outro lado, também é verdade, como dizia o grande escritor espanhol barroco Gracián (Baltazar Gracián y Morales), que falar a verdade é como sangrar o coração. Talvez o argumento mais ligado à política, embora indiretamente, seja o uso e o abuso do segredo a fim de incutir temor, de intimidar; incutir a ideia da existência de mistérios incognoscíveis e que não devem ser conhecidos. A relação entre segredo e medo também é um dos motivos principais. Não acredito que os movimentos populistas de direita tenham muitas conexões com o segredo; existe, certamente, uma astuciosa e eficaz propaganda para levar as pessoas a acreditar que há conspirações em toda parte, que o “povo” (palavra contudo usada com um sentido muito vago) é mantido na ignorância do que fazem contra ele. E isto é muito útil para a demagogia da suposta autenticidade, da identidade popular e assim por diante.
Mas para que tipo de segredo eles se inclinariam? Por que as pessoas confiam tanto nesse discurso?
Eles se apresentam como o oposto do “segredo”, como autênticos, puros, próximos da natureza e da suposta identidade eterna da sua pátria, seja ela grande ou pequena, e assim por diante. Eu, contudo, acredito que, infelizmente, o sucesso destes populismos de direita também tenha sido favorecido pela falta de percepção de muitos movimentos de esquerda, que abandonaram as batalhas pelos direitos sociais, passando a combater, justamente, mas quase tão somente, pelos direitos civis, ostentando uma tolerância exagerada, por vezes abstrata, por seus adversários políticos, fazendo assim o jogo da direita. A classe operária sentiu-se traída por seus tradicionais representantes. Um sem número de intelectuais já falou com grande dignidade da necessidade de acolher a todos sem no entanto mostrarem alguma disposição a cuidar pessoalmente de um indivíduo sequer, e isto favoreceu a horrenda propaganda identitária racista.
Que lugar você acredita que o ensaio, como forma literária, pode ocupar nesse contexto de ataque à linguagem?
Acredito que o ensaio é uma forma literária de extrema importância. O ensaio está muito mais próximo da invenção narrativa do que, por exemplo, a crítica literária, porque o ensaio se constrói como objeto de sua pesquisa no ato mesmo de elaborá-la, e no início, assim como no romance, não sabe muito bem aonde ele o levará, para onde irá. Quando comecei a escrever os meus ensaios, não sabia exatamente o que iria escrever, o que pretendia buscar, como quando penetramos em uma floresta e nos deparamos com diferentes trilhas. No entanto, por exemplo, no caso de uma monografia crítica sobre um autor, como o meu livro sobre Heinse (Johann Jacob Wilhelm), um escritor alemão do século 18, o autor não sabe no início qual será o resultado, mas sabe muito bem qual é o objeto da sua busca, justamente, no meu caso, Heinse. O texto mais belo sobre este tema é o do jovem Lukács no seu ensaio sobre o ensaio que é a carta a Leo Popper. O ensaio fala de alguma coisa também, e sobretudo, para aludir a alguma outra que não pode ser expressa diretamente.
Qual você acha que é caminho de se opor a um discurso como o de Donald Trump em relação às fake news? Como debater com alguém que não valoriza fatos?
Como em muitos outros casos, neste também Trump usou muito habilmente para os próprios fins e para a sua política enganadora alguns aspectos negativos que realmente existem. Sua agressão à imprensa é intolerável e perigosa, e suas mentiras o são ainda mais. Mas infelizmente é preciso dizer que muitas vezes a imprensa, mesmo quando não tem qualquer ligação com os movimentos populistas de direita cumpre muito mal sua função. Ela diz, não querendo dizer, carece de coragem e de denúncia; frequentemente procura entrincheirar-se em uma posição ‘politically correct’ que na realidade é uma falsificação. Neste sentido, também o inaceitável ataque de Trump faz parte de sua inteligente (infelizmente) capacidade de explorar os erros dos outros. Para combater Trump, não basta dizer que ele é vulgar, etc. Quando Hillary Clinton definiu como “disgusting” os eleitores de Trump, entregou a eles um fabuloso presente, porque fez com que se sentissem ignorados e desprezados por ela e pelo partido democrata.
Depois do Brexit, você acha que a Europa chegou à sua
ruína? Você ainda é um “patriota europeu”?
Sim, sempre fui, ainda e cada vez mais sou um patriota europeu porque continuo acreditando que a Europa é a nossa única possibilidade. Hoje, os problemas são europeus; não existem problemas importantes que digam respeito apenas a um dos atuais Estados, porque cada realidade repercute sobre todas as outras. Mas para isto, seria necessário um verdadeiro Estado europeu; evidentemente federal, descentralizado, entretanto um verdadeiro Estado com leis válidas e obrigatórias para todos e com linhas políticas válidas e obrigatórias para todos. Por exemplo, é impossível que em um Estado exista um tipo de política em relação aos migrantes, e em outro Estado da União Europeia uma política totalmente oposta. Desse modo, a atual União Europeia corre o risco de assemelhar-se ao Sacro Império Romano, entorpecido, burocratizado, inconsistente e hesitante, que Napoleão apagou com um sopro. (Colaborou Anna Capovilla)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.