Bernardo Napolitano não conseguia dormir se seus pais não contassem uma história para ele. “Eles contavam, mas queriam descansar e eu ficava chorando, pedindo mais, e acabava conseguindo”, relembra o garoto que hoje, aos 12 anos, mantém o hábito de ler à noite. Agora, sozinho.
Apenas 33% da população brasileira teve, como Bernardo, alguém que o incentivasse a ler. Para 15%, essa pessoa foi a mãe ou responsável do sexo feminino (11%) e o pai ou responsável do sexo masculino (4%). Os dados são da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2016), que diz ainda que 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro.
Quando o Colégio Albert Sabin pediu que seus alunos (tem até o Ensino Médio) mergulhassem nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU e criassem projetos relevantes, a ideia de uma biblioteca foi natural para Bernardo, e foi fácil convencer os amigos Leonardo Jun, Pedro Baccalá e Rafael Romano. Houve um prêmio no final, e a Biblioteca Social Colaborativa dos meninos, instalada em uma das 10 geladeiras que iriam para o lixo e que eles ganharam de uma fábrica de sorvete, e que hoje funciona no pátio da Emef Conde Luiz Eduardo Matarazzo, pertinho do Albert Sabin, venceu.
Colaboração
Não foi fácil tirar a ideia do papel e o ‘colaborativa’ do nome dá o tom de todo o processo. Os 500 livros da biblioteca foram doados ou comprados com dinheiro que eles arrecadaram em campanhas junto a parentes e amigos dos pais. Deram sorte quando chegaram à Saraiva e contaram o que seria feito dos livros: ganharam 50% de desconto.
Um ponto que preocupa os garotos é a manutenção do acervo. Não há controle. E se não devolverem os livros? “Talvez não devolvam, mas é para devolver”, diz Bernardo. “Estamos exercitando a consciência de colaborar”, emenda Leonardo. “Se não devolverem, tudo bem também, está valendo. Só não tínhamos planejado isso”, completa Bernardo. Eles imaginam que até os 17 anos deem conta de completar as 10 bibliotecas, mas já sonham com um “projeto infinito”. “Já pensou, outros países?”, diz Rafael. “Mas como levaríamos a geladeira?”, questiona Pedro. “Ainda somos crianças e não temos muita experiência, mas quando formos adultos saberemos o que fazer”, conclui Rafael.
Como prêmio, o grupo participa, em janeiro, no Recife, do projeto Volunteer Vacations. Na reunião que tiveram para organizar a viagem, surgiu a ideia: por que não inaugurar a segunda unidade da Biblioteca Social Colaborativa lá? Até o transporte da geladeira eles já conseguiram viabilizar. Só o desconto que pediram de novo para a Saraiva não foi tão bom.
Carrinhos e ‘bibliociletas’
Pudera, no momento em que Bernardo, Pedro, Leonardo e Rafael conciliam os estudos com seu empreendimento social que pretende garantir que pessoas que não podem comprar livros tenham acesso a eles, as livrarias Cultura e Saraiva enfrentam a pior crise de sua história. A situação é grave e ameaça todo o mercado editorial, mas existe uma rede que tem feito, com muita criatividade, a literatura circular por lugares onde há pouca ou nenhuma livraria ou biblioteca.
Na Bahia, a editora Solisluna precisava escoar sua produção e queria estar mais perto dos leitores. A ideia veio em 2014 e foi colocada em prática no ano seguinte. Hoje, num fim de semana, o Carrinho de Livros vende o que a editora demorava dois, três meses para vender na Cultura, conta Valéria Pergentino, fundadora da Solisluna. A livraria ambulante se parece com um carrinho de sorvete. Tem capacidade para 300 livros, circula por Salvador e cidades e eventos da região. “Ele dobrou nossa capacidade de venda e pode ser uma solução para outras editoras”, conta. Sua ideia é ter uma espécie de franquia de carrinhos temáticos com obras de casas independentes – um para literatura infantil, outro para livros de turismo e por aí vai.
O Carrinho de Livros venceu em 2017 o 2.º Prêmio Retratos da Leitura, do Instituto Pró-Livro. A nova edição revela seus vencedores no dia 10 e um dos projetos finalistas está ajudando a mudar o ânimo dos moradores de Cidade Olímpica, em São Luís do Maranhão – com 120 mil habitantes hoje, ela já foi uma das maiores ocupações da América Latina. É por lá que circulam as bibliocicletas do coletivo Residência 05.
A ideia era fazer uma biblioteca ambulante, que levasse e depois buscasse os livros na casa das pessoas. “Mas não foi o que aconteceu. Cerca de 80% da população não sabia ler. A partir desse momento, começamos a ler para as pessoas”, conta Layo Bulhão, que há três anos abriu sua casa para que as pessoas tivessem “um espaço de troca”.
Tem sido um processo transformador, diz. “Sentimos as pessoas empoderadas e crianças, adultos e idosos que nunca tinham recebido uma leitura já pegam livros emprestados.” A biblioteca do grupo, que fica na casa de Layo, tem mil livros. “A literatura é o caminho para que possamos imaginar um mundo melhor para todos. E um país sem imaginação é um país fácil de ser manipulado”, conclui.
Em São Paulo, a Secretaria Municipal de Cultura resgata o De Mão em Mão e começa a distribuir livros em terminais de ônibus na quarta, 5. “Ler é a porta de entrada para o mundo da cultura. Escolhemos 10 títulos de mais fácil leitura, os clássicos eternos, com no máximo 200 páginas”, conta o secretário André Sturm. “As pessoas fazem viagens longas. O que queremos é que em vez de ficar olhando para cima no ônibus, elas leiam”, completa. A tradução foi comprada de editoras e o projeto gráfico foi feito pela equipe da Secretaria. Serão, ao todo, 100 mil exemplares – 10 mil de cada título, que não precisam ser devolvidos. O investimento foi de R$ 323.800.
Iniciativas como essas, e também como a Geladeiroteca, de Franca, que está para inaugurar sua 11.º biblioteca e poderia servir de exemplo para os meninos do Albert Sabin, podem não resolver o problema da formação de leitores, mas ajudam. “Sabemos que muitos brasileiros nunca receberam um livro para ler ou folhear, mas as representações sobre a leitura e o livro são muito positivas no imaginário do brasileiro. Se o livro chegar às mãos, muitos irão manusear e ler algumas frases e poderão ter a sorte de ler algo que desperte seu interesse. Mas isso não vai acontecer, se o livro não chegar até eles”, diz Zoara Failla, do Instituto Pró-Livro.
Biblioteca Circulante
São Paulo, 1935. Um ofício de Mario de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura e Recreação, ao prefeito de São Paulo contava sobre a criação da primeira Biblioteca Circulante da cidade. Eram pequenas bibliotecas em automóveis destinadas a levar o livro solicitado à casa do leitor e “proporcionar aos frequentadores dos parques uma leitura imediata, dando assim ao farniente uma orientação cultural”.
Extinta e recriada algumas vezes, e inspiração para outras bibliotecas volantes – uma importante é o BiblioSesc -, ela volta às ruas de São Paulo dia 7 como Ônibus da Cultura. Segundo o secretário André Sturm, ele vai circular por 12 locais da periferia que não contam com equipamentos culturais. Dentro, é uma biblioteca. Fora, palco para atividades culturais. Depois de 14 dias, o ônibus volta ao local para que as pessoas possam devolver os livros e escolher outros. Previsto para durar um ano e com 2.250 itens, o projeto vai custar R$ 361.939,40.