Seria o roteiro previsível, com lágrimas no final, depoimentos de revolta e lamentos ideológicos, se o que se viu nos últimos dois dias em Olinda, a cidade que acorda ao som do ensaio de saxofones em sua Times Square própria, os Quatro Cantos, não subvertesse a lógica da crise. Um festival de música e cinema chamado Mimo fez ali sua 15ª edição com estratégia de guerrilha. Sem dois grandes patrocinadores de shows gratuitos realizados pelo Brasil sempre em igrejas e praças abertas, o BNDES e a empresa Cielo, a situação ameaçou ultrapassar o suportável. “O ano mais difícil de todos”, diz Lu Araújo, idealizadora do projeto.
Duas temporadas anteriores foram adiadas para 2019, a do Rio de Janeiro e a esperada para ser a primeira em São Paulo, e a programação, realocada. Se jogasse a tolha de Olinda, nem a fidelidade de seu último escudeiro, o Bradesco, poderia salvar a marca da desolação de uma plateia educada assistindo Chucho Valdés e Egberto Gismonti nos bancos da Igreja da Sé. Sem alardear suas dificuldades de produção com muito menos dinheiro, a Mimo caiu nas redes, foi abraçada por um discurso de resistência cultural e recebeu 217 inscrições de jovens voluntários dispostos a doar seus tempos para não ver o trem parar. Meia noite e meia da noite de sábado, 24 de novembro, Praça do Carmo, centro de Olinda.
Se pensou em uma programação que simbolizasse a resistência de um projeto sobrevivente pelas unhas de uma mulher, isso não foi anunciado. Mas quando Emicida subiu ao palco para o último show da noite, as 20 mil pessoas reunidas ali já pareciam ter entendido algum recado. Antes do rapper, um quarteto da Palestina chamado 47 Soul já havia acionado a bomba de efeito moral. A questão palestina pode parecer distante, mas ali estava muito próxima. Z the People, El Far3i, Walaa Sbeit e El Jehaz usam a plataforma rítmica do rap para se tornarem universais tocando dabke, um ritmo regional, e instrumentos árabes. Seus discursos são pela paz entre judeus e árabes em territórios ocupados, pela criação de um lar nacional para o povo judeu na Palestina e pelo fim da guerra histórica entre irmãos vizinhos. A simples existência do grupo é a própria resistência. E quando eles gritam “não ao fascismo”, dá para sentir da Igreja do Carmo a terra da praça tremer.
Emicida já via pessoas subindo em gradis para ouvi-lo. A Chapa é Quente, Passarinhos, Hoje Cedo. Sua mensagem de paz também é legitimada pela dor, o que dá a seu discurso a força de mil homens. Mais do que estar ali para cantar junto, a plateia reconforta-se por vê-lo e senti-lo um aliado. E talvez seja essa a função maior do rap de massa. Os fãs já sabem quem está certo ou errado, precisam agora voltar a se sentir juntos, capazes, sonhadores e inspirados. As batidas graves de A Chapa é Quente deveriam ser indicadas em postos de saúde contra a depressão.
A Igreja do Carmo havia sido ocupada, antes dos shows na Praça, por Egberto Gismonti. É um velho conhecido dos line ups do festival, mas estava ali, segundo Lu, por um sentido de retrospectiva depois de 15 edições. E os bancos da catedral seguiam ocupados por um público de silêncio religioso, incluindo o escritor Luis Fernando Veríssimo na primeira fila, enquanto Egberto mostrava uma versão ao piano de Carinhoso, de Pixinguinha. Egberto, que apresentaria a cantora gaúcha Grazie Wirtti, também falou de resistência cultural em seu discurso e foi muito aplaudido. A noite anterior havia sido, no mesmo altar, de Hermeto Pascoal e banda, com o baixista Itiberê Zwarg e o pianista André Marques. Os shows da praça ficaram, também na noite de sexta, com o grupo português instrumental Dead Combo e Tom Zé.
Aos 82 anos, Tom tem o mesmo espírito indomável dos anos de Tropicália. Seu pensamento parece não seguir linha alguma, jogando o ouvinte em um caos ilógico e exaustivo. É preciso então entender as entrelinhas. O primeiro Fórum de Ideias, apresentado e mediado pela jornalista Chris Fuscaldo, deixou Tom como ele queria, solto. Não foi a melhor das saídas, já que sua memória, e não seu pensamento, precisa de ajudas pontuais para chegar onde quer. A redenção da suposta confusão vem nos shows. A música de Tom é sua fala. Tudo inesperado e abrindo janelas o tempo todo que às vezes se fecham, às vezes não, mas dizendo sem falar que só a ideia de homem livre, aquela que não segue padrões, pode ser transformadora. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.