A obra do escritor italiano Domenico Starnone chegou ao Brasil na crista da onda provocada pelo furacão Elena Ferrante. Laços, lançado pela editora Todavia no ano passado, germinou entre os leitores e as leitoras do País o mistério que consumiu a cena literária da Europa: seria Starnone o verdadeiro prodígio por trás da autora de A Amiga Genial (Editora Globo)? Para matar a charada, os interessados precisavam ler Laços em contraponto com Dias de Angústia (Editora Globo), de Ferrante. Se em larga medida o jogo de detetive ajudou a vender e a divulgar o livro de Starnone, em outra acabou por ofuscar o que havia de singular na boa prosa dele: o gigantismo da vida escondido embaixo das miniaturas e dos pequenos eventos cotidianos.
Em Assombrações, que a Todavia acaba de lançar no Brasil, Starnone retoma o escrutínio dessas minúcias para revelar ao leitor o que há de esplêndido e de aterrorizante no processo de envelhecimento de um artista. Assim como em Laços, as relações familiares formam a base do pequeno romance. O protagonista é Daniele Mallarico, um ilustrador de sucesso, na casa dos 70 anos de idade, que é arrancado de sua zona de conforto em Milão por um pedido insistente de sua única filha. Ele termina obrigado a retornar a Nápoles, onde nasceu e foi criado, para tomar conta de uma criança (tarefa das mais difíceis, registre-se) enquanto a filha e o marido se ausentam do lar por uns dias.
A volta do protagonista à casa onde cresceu e que herdara dos pais ocorre em um momento de debilidade física – Daniele acabara de ser submetido a uma cirurgia – e de alguma carência emocional provocada sobretudo pela solidão. A temática “homens viris enfrentando o drama do envelhecimento” está longe de ser uma novidade na literatura ocidental. De Ernest Hemingway (1899-1961) a Philip Roth (1933-2018), o tema já foi explorado com maestria excepcional pelos grandes.
No caso do narrador de Starnone, a decadência física e intelectual é acentuada pelo contraponto com Mario, seu netinho de quatro anos de idade, talentoso, mimado, intempestivo e muitas vezes cruel. Juntos, eles travam um duelo que obriga o protagonista a acertar contas com seus fantasmas e confere ao garoto o papel de antagonista do romance, se revezando no posto com o jovem e arrogante editor de Daniele.
Uma vez sozinho com o pequeno no apartamento e em busca de inspiração, Daniele revê antepassados, sua ligação com a cidade natal, sua trajetória artística, questiona seu talento (ou falta dele) e relembra o ódio ao pai. Todas as assombrações de uma vida aparecem para atormentar o velho enquanto ele toma conta do menino e tenta ilustrar o conto The Jolly Corner, de Henry James (1843-1916), este em espelhamento literário com Assombrações.
Novela napolitana
Domenico Starnone, além de escritor, é roteirista, jornalista e professor. Nasceu em 1943, em Nápoles, e vive em Roma, casado com a tradutora Anita Raja. Em 2016, uma investigação jornalística apontou Raja como sendo a escritora por trás do pseudônimo Elena Ferrante, que assina a tetralogia napolitana (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Fica e de Quem Foge e História da Menina Perdida), sucesso em diversos países e no Brasil. Desde então, a ligação entre ambos, o estilo seco, preciso e realista da prosa, e a temática familiar alimentam as especulações, inclusive a de que os romances de Starnone foram escritos por Ferrante, ou melhor, por Raja.
Em uma entrevista recente ao jornal El País, Starnone falou sobre as especulações. “Não sou Elena Ferrante. Seria muito fácil ser ela por ter escrito 19 páginas em que uma mulher se lamenta”, disse. O escritor se refere à parte de Laços em que uma esposa abandonada escreve cartas ao marido fujão, o principal ponto de espelhamento entre o romance dele e o de Ferrante.
Em Assombrações, com ótima tradução para o português de Maurício Santana Dias, a temática, como já foi dito aqui, é extremamente masculina e a narrativa em primeira pessoa está sempre a cargo do velho Daniele, pontos que poderiam ser definidores definitivos de diferenças em relação à obra de Ferrante. No entanto, assim como ocorre com Laços, Assombrações também possui vasos comunicantes com Dias de Abandono. O mais evidente deles é o cenário onde se desenvolvem as tramas, o interior de apartamentos habitados por famílias atormentadas, ou, como diz o narrador Daniele, “desregradas”. Essa semelhança atinge seu auge nas passagens mais tensas das duas histórias, que envolvem crianças e prisões domésticas. É natural, portanto, supor que o mistério da suposta relação Starnone-Ferrante e o diálogo entre as obras de ambos continuem a ser alimentados. E daí? Especulações à parte, o que interessa ao leitor é que esses expoentes da prosa italiana contemporânea produzem boas narrativas nas quais a banalidade cotidiana se revela repleta de simbolismos, belas imagens e dramaticidade. Na melhor cena de Laços, o pai tem uma epifania ao constatar que o filho amarra os cadarços do sapato do mesmo jeito esquisito que ele. Em Assombrações, avô e neto se fundem no traço de um desenho. No universo narrativo de Starnone, os fantasmas moram nos detalhes.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.