A ideia era ser um local de comidas alemãs. O Bar Alemão, sem o “do”. Isso há 50 anos, em 1968, quando a música brasileira fervilhava na mesma temperatura que a sanha dos militares. Por premonição ou coincidência, o mundo que existia do lado de dentro daquelas portinhas na Avenida Antártica, perto do estádio do Palmeiras, naquelas redondezas desde 1902, daria algumas voltas até parar nas mãos de um outro alemão que nada tinha a ver com o nome do lugar. Um brasileiro louro de olhos claros que não aprenderia a sambar, mas a fazer sambas como poucos.
O “alemão” Eduardo Gudin só comprou mesmo o bar em 2003. Antes disso, o lugar era do pandeirista Dagoberto, criatura cativante, fumante de sete maços de cigarro por dia. Gudin conhecia bem aquele território desde os anos 1970. Já sentia que o oxigênio ali tinha mais do que as fumaças de Dagoberto. Elis Regina esticava noites ali, Vinícius de Moraes, Toquinho, Paulo Vanzolini, Beth Carvalho, Nelson Cavaquinho. Até que Dagoberto morreu, seu filho assumiu os negócios e a casa começou a declinar. A crise fez o dono procurar Gudin e perguntar se ele, um profundo conhecedor daquelas mesas, não gostaria de tê-las também. Gudin comprou o bar e passou a profissionalizá-lo sem deixar perder a ternura das boêmias.
E então é hoje, segunda (12), que o Bar do Alemão ajeita as cadeiras para 50 clientes e comemora seus 50 anos de noites. Para isso, conseguiu tirar de casa, no Rio, um de seus clientes mais fiéis. O compositor Paulo Cesar Pinheiro, dos que mais frequentaram a casa dentre a chamada “turma do Rio”, ganha uma homenagem na semana em que aproveita e lança um livro, Poemúsica (que terá sua noite de autógrafos nesta terça-feira, na Livraria da Vila, à Rua Fradique Coutinho, 915, a partir de 18h30).
Outros frequentadores do Bar do Alemão vão fazer, a partir das 20h desta segunda, uma espécie de homenagem a PC Pinheiro, revezando-se nas rodas para cantar suas músicas. As cantoras Karine Telles e Karina Ninni, os violonistas Cezinha Oliveira e Sérgio Arruda, o pandeirista Barão, os cantores Renato Braz e Roberto Seresteiro.
Gudin tem ligações mais do que emocionais com seu bar. Ele fala com certo grau de suspeição, mas quem foi até lá sabe que não vende gato por lebre. “Não há outro lugar assim em São Paulo. Os músicos tocando ali nas mesas, sem palco. Você chega, come um ótimo prato, toma um uísque e fica ali. Não existe mais boemia assim na cidade.”
E também não se trata de um endereço para quem quer dançar ou ouvir música alta. As rodas se formam ali com uma base de músicos da casa e outros que vão chegando. “Não temos hora para fechar”, ele diz. O volume nunca é alto demais. Foi assim que, nos anos 1970 e 80, a casa começou a atrair músicos e jornalistas que saíam de suas redações. “O pessoal do Estadão e da TV Cultura vinham muito aqui. Luis Nassif, Serginho Leite. Ficávamos muitas vezes até amanhecer. Não existe mais isso.”
Mas a casa ainda existe. Gudin sistematizou as rodas, melhorou a cozinha, redesenhou o que podia do espaço. Juntando mesas de um pequeno mezanino, as do salão principal e da calçada, a lotação não ultrapassa as cinquenta pessoas. Um dos sanduíches das madrugadas, aposta certa, é o cangalha. “Nelson Cavaquinho vinha sozinho de taxi”, ele lembra. “Adoniran vinha mais nos anos 70.”
A vizinhança da Avenida Antártica nunca reclamou. Com o cuidado de isolar as paredes do fundo e fechar as portas de vidro a partir de um horário determinado, o Bar do Alemão pode dizer que colhe o que plantou. Quando Gudin assumiu um terreno que parecia ter seus dias contados, apostou em uma música que não tinha prazo de validade. As crises passam, as canções que saem dali ficam.
50 ANOS DO BAR DO ALEMÃO
Local. Avenida Antártica, 554. Água Branca. Gratuito. Nesta segunda, 12, a partir das 20h, com homenagem a Paulo Cesar Pinheiro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.