Filmes inéditos exploram o rico cancioneiro brasileiro por meio de biografias de cantores e de gêneros musicais
Não é de hoje que o cinema nacional joga suas lentes para a música popular brasileira e para a vida dos seus cantores e instrumentistas. O dueto entre cinema e música já gerou filmes como Cazuza – O Tempo Não Para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, Dois Filhos de Francisco, de Breno Silveira, e os documentários Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil, e Tropicália, de Marcelo Machado, para ficar em alguns títulos bem sucedidos.
Nos próximo ano, chegarão aos cinemas documentários biográficos de sambistas – Wilson das Neves, Mussum, Adoniran Barbosa e Clementina de Jesus -, da maior divulgadora da música caipira, Inezita Barroso, do cantor e poeta Arnaldo Antunes e da cantora, ativista e performática Linn da Quebrada. Além de O Grande Circo Místico, de Cacá Diegues, Azougue Nazaré, de Tiago Melo, sobre o embate entre o maracatu e um pastor na Zona da Mata em Pernambuco e Todas as Canções de Amor, de Joana Mariani, uma homenagem às músicas, a maior parte composições brasileiras, o único longa que estreia ainda este ano, agora em novembro.
Uma das composições do compositor, cantor e baterista, Wilson das Neves (1903-2017), O Samba é Meu Dom, intitula o documentário de Cristiano Abud, diretor mineiro, que entre 2009 a 2012, acompanhou junto com sua equipe, a rotina de trabalho e de vida de Neves. Além desse material captado por Abud, o filme traz depoimentos de artistas que trabalharam com o sambista, como Chico Buarque e Elza Soares e imagens de arquivo.
Com uma narrativa semelhante, Inezita, de Helio Goldsztejn, reconstrói a trajetória de Inezita Barroso (1925-2015), conhecida do grande público pelo programa Viola, Minha Viola, que ela apresentou durante 35 anos, na TV Cultura. O documentário, no entanto, mostra outras facetas da cantora, apresentadora e atriz – chegou a fazer sete filmes. Inezita não foi somente uma incansável divulgadora da música caipira. Chegou a viajar por todo país coletando material sobre manifestações culturais populares, assim como fizera Mário de Andrade.
Duas diretoras, Ana Rieper e Susanna Lira, fazem dois belos retratos dos seus personagens documentados. Em Clementina, Ana Rieper vai atrás das origens da Clementina de Jesus (1901-1987), em Valência, no Rio de Janeiro, para traçar um painel antropológico da sambista carioca, que começou a cantar já com 63 anos, grande parte deles trabalhando como empregada doméstica. Enquanto que, em Mussum, Um Filme do Cacildis, Susanna Lira equilibra bem as histórias do comediante de Os Trapalhões, com o seu trabalho como músico do grupo Os Originais do Samba, que lhe dava um enorme prazer, e a maneira como Antônio Carlos Bernardo Gomes, o Mussum, educava seus filhos e lidava com o preconceito racial.
Em épocas distintas, São Paulo foi o berço e alimentou a obra de três artistas: o sambista, humorista e ator, Adoniran Barbosa (1910-1982), o cantor e poeta Arnaldo Antunes e a performática e funkeira Lynn da Quebrada. No documentário Adoniran – Meu Nome é João Rubinato, Pedro Serrano recupera a vida do autor de clássicos como Trem das Onze e Saudosa Maloca, que perambulava pelos bairros populares e o centro de São Paulo à procura das histórias do seu povo simples, fonte da poesia de suas composições.
Com a Palavra, Arnaldo Antunes, Marcelo Machado coloca o ex-integrante do Titãs para assistir imagens de sua carreira. Dessa relação, o diretor revela um artista coerente e sem medo de se arriscar. Um Arnaldo Antunes múltiplo e indecifrável. Numa São Paulo com sua violência crescente e quase sem poesia, Linn da Quebrada, personagem retratada no corajoso e transgressor Bixa Travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, faz do seu corpo e da sua voz ecos de uma sobrevivência marginalizada.
Da ficção, vêm três filmes que procuram dar conta de um universo mais amplo da música como gênese e como dispositivo narrativo. O diretor Cacá Diegues faz de O Grande Circo Místico um ato arriscado ao transpor para o cinema a poesia de Jorge Lima, que já sido adaptada em musical por Chico Buarque e Edu Lobo. Já Todas as Canções de Amor, de Joana Mariani, utiliza criativamente alguns clássicos do repertório da MPB e de quatro músicas internacionais para narrar a história de dois casais, em tempos distintos, entre cotidianos, brigas e reconciliações.
De Pernambuco, vem Azougue Nazaré, de Tiago Melo, um filme que trabalha na fronteira tênue entre o documentário e a ficção. A história se passa em Nazaré da Mata, numa zona canavieira, quando um grupo de maracatus entra em confronto com um pastor de uma igreja neopentecostal da região, que enxerga naquela manifestação popular de raízes africanas uma adoração ao demônio. Um filme que discute a intolerância religiosa com as tradições culturais afrobrasileiras. O longa ganhou o Bright Future do Festival de Roterdã desde ano.