Estamos em plena temporada dos dentes afiados – Megatubarão, o novo Predador. Só Hollywood para transformar vilões tradicionais em… Mocinhos? É difícil usar a expressão, mas nada define melhor o estado do mundo – direitização, lunáticos no poder, etc. – do que a ambivalência de certas narrativas de blockbusters. Venom, que estreia nesta quinta, 4, é um bom exemplo. Venom foi, e é, vilão na série do Homem-Aranha, mas, agora, ao contar sua história, o diretor Ruben Fleischer sugere que não é bem assim.
Tom Hardy faz Eddie Brock, repórter investigativo que, de cara, resolve peitar seu entrevistado. O cara simplesmente manda na emissora de TV, mas Eddie nem por isso deixa de encurralá-lo, pois se trata de um cientista que está pavimentando sua carreira com cadáveres. A própria assistente do ‘monstro’ acredita que estão fazendo pesquisas para curar o câncer. Longe disso. Nosso homem está querendo aprimorar a espécie humana, promovendo a simbiose de organismos alienígenas com humanos.
Brock vira cobaia e o resultado é Venom, com seus dentes afiados – e destruidores. Mas, atenção, quem acha que ele é do ‘mal’. Por influência de Brock, Venom desenvolve noções de ética. É hilário.
Invasores de corpos
Filho de um físico (David Elliott Fleischer), Ruben Fleischer estreou na direção de longas com Zumbilândia, em 2009. Desde então dirigiu 30 Minutes or Less e Gangster Squad, até chegar agora a Venom. O cinema contou muitas histórias de invasores de corpos. O novo hospedeiro, agora, é um jornalista chegado às denúncias. Ao mexer com o homem errado, que manda no jornal em que trabalha, Eddie Brock – seu nome – é despedido e vai ao fundo do poço. É quando recebe outra denúncia justamente contra o cientista responsável por sua desgraça. Eddie vai investigar e, claro, termina cobaia dos experimentos do sinistro Carlton Drake.
Atenção para o spoiler. Eddie hospeda em seu corpo a coisa vinda do espaço. Nas demais cobaias, as coisas, movidas por uma fome atávica, terminam por comer o interior de seus hospedeiros. Com Eddie não ocorre apenas a simbiose – Venom torna-se amigo (?) da coisa. Conversam, trocam ideias. E, como a coisa adora decepar e comer cabeças, Eddie tenta convencer Venom de que o mundo se divide entre bons e maus e nem todo mundo merece ser decepado. Eddie, portanto, vai tentar dotar Venom de noções de ética. A coisa, de língua espessa e dentes afiados, logo percebe que Eddie é um ‘loser’, derrotado, e na origem dos seus problemas está a ruptura com Anne. Sem a mulher, Eddie vive à deriva. O mais curioso é que Venom, como uma voz na cabeça de Eddie, não apenas simpatiza com Anne como dá ao amigo conselhos sobre como tentar reconquistá-la.
Ficção científica com toques de terror, Venom, na verdade, confirma a atração de Ruben Fleischer pela comédia. O repórter e o monstro. É curioso como, no universo dos comics, super-heróis como Superman e Homem-Aranha são dublês, ou alter egos, de repórteres – Clark Kent e Peter Parker. Com a dupla Eddie/Venom, a simbiose é mais profunda.
Eddie abriga Venom em seu interior e se, no começo, ele se intimida quando testemunha a lojinha ser assaltada – e nada faz quanto a isso -, no fim, ao vestir a máscara do ‘monstro’, nosso repórter torna-se inexpugnável. O desfecho em aberto sugere novas aventuras de Venom, e até o vilão contra o qual nossa ‘dupla’ vai ter de investir. Sim, os créditos finais são reveladores. Duas cenas adicionais, e a segunda, em quadrinhos, só aparece ao fim daquela interminável lista de nomes.
Graduado em história, Ruben Fleischer dirigiu comerciais de TV e videoclipes antes de chegar ao cinema. Todos os seus filmes compartilham essa ideia de um mundo à beira do caos, onde mortos-vivos e extraterrestes disputam espaço com humanos. Zumbilândia, com Woody Harrelson e Jesse Eisenberg, talvez seja lembrado hoje por haver proporcionado a Emma Stone um de seus primeiros papéis. Harrelson agora é anunciado como o grande vilão do próximo Venom, se houver – Carnificina. A ideia é justamente essa. Na medida em que Eddie tenta manter Venom domesticado em seu interior, é preciso liberar predadores como o Carnificina. Blockbusters, sem banho de sangue, não dão certo.
Michelle Williams tem feito tantos filmes ‘de arte’, e coleciona tantas indicações para o Oscar, que chega a ser surpreendente vê-la num blockbuster. Ela explica – fez pelo dinheiro. E Tom Hardy? Ator que tem trafegado entre os blockbusters e projetos mais artísticos, Hardy estrelou Mad Max – Estrada da Fúria, mas quem esperava vê-lo se transformar no sucessor de Mel Gibson na ópera de estrada, no mundo futurista distópico, de George Miller, teve de ver Charlize Theron bancar a heroína protofeminista, antecipando Mulher-Maravilha.
Todo, ou quase todo, super-herói tem uma identidade secreta. Super-Homem, Homem Aranha, todos correm até o beco mais próximo para vestir o uniforme quando a coisa esquenta. Hardy, ou Eddie, é único por ter a coisa dentro dele. Eddie, fala – discute? – com Venom, cuja voz só ele ouve. Até por conta disso Ruben Fleischer acerta ao adotar o tom de comédia. A crítica norte-americana tem caído matando sobre o filme. Dumb, idiota, é o adjetivo que tem sido mais empregado. Ruben radicaliza. Acredita que, se é para ser idiota, quanto mais idiota – melhor.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.