Em 2002, Alexandre Reinecke ainda era um diretor iniciante, mas reuniu a confiança necessária para comandar duas experientes atrizes no palco. Sob o olhar desconfiado de Beatriz Segall e Myrian Pires, ele quebrou as barreiras e as colocou em um emocionante duelo cênico na peça Quarta-Feira, Sem Falta, Lá em Casa. Passados tantos anos, Reinecke decidiu revisitar o texto escrito por Mario Brasini e novamente convocou duas artistas de vasta carreira: Eva Wilma e Suely Franco. “Mas agora eu estou mais seguro”, comenta o encenador da montagem que estreia na sexta-feira, 5, no Teatro Porto Seguro.
Tão confiante que, desta vez, Reinecke deixa de lado o caminho realista que adotou na primeira versão. “Não quero referências de tempo e lugar e, para isso, criei um cenário em que os objetos parecem flutuar”, conta ele, conseguindo isso ao escolher um fundo escuro no cenário e também ao não revelar o perfil das paredes. “Os móveis terão os pés e as extremidades pintadas de preto e os quadros parecerão suspensos. Para mim, o realismo vem perdendo espaço no teatro porque a concorrência com o cinema e a televisão é cada vez mais desigual.”
Tudo isso para concentrar o foco na palavra e na atuação das duas atrizes. Elas contam a história de Alcina (Eva) e Laura (Suely), amigas há mais de quarenta anos que se reúnem habitualmente às quartas-feiras para tomar chá e discutir amenidades sobre família, vizinhos, amigos, enfim, sobre o passado que as une. Tudo vai bem até que, certo dia, elas descobrem que não sabem tanto assim uma da outra. Pior: revelações vêm à tona, mostrando faces terríveis e totalmente desconhecidas.
“As duas mulheres passam a vida a limpo com força”, comenta Eva Wilma que, aos 84 anos, exibe uma saudável insegurança. “É um confronto de vontades e, para não estragar a surpresa, nossa atuação necessita ser precisa, daí ainda estar fazendo descobertas.” Seus gestos delicados, sua fala cortês, seu perfil de grande dama caem como uma luva para a tarefa de dar vida à surpreendente Alcina.
O mesmo se pode dizer de Suely Franco – prestes a chegar aos 79 anos (festeja no dia 16), ela exibe a segurança de quem faz o que gosta. “Atuar é minha paixão e gosto especialmente de peças como essa, em que cumplicidade com a colega de cena é essencial”, diz ela, cujo personagem exibe uma falsa fortaleza. “São muitas metáforas que, aos poucos, estou digerindo.”
Um grande trunfo apresentado pelas atrizes é creditado à própria experiência de vida. “Convivemos com perdas e limitações físicas e isso acrescentamos aos nossos papéis, o que lhes confere mais credibilidade”, conta Eva, para quem a solidão torna-se uma necessidade da existência. “E, na peça, isso se traduz no desabafo guardado uma vida inteira.”
Prepare-se, portanto, leitor/espectador para um encontro desestabilizador: aquela reunião de quarta-feira presenciada pela plateia não se assemelha a nenhuma outra anterior e ainda aponta para um novo caminho. “Vamos fundo no mais puro drama, mas o que é encantador no texto de Brasini é sua opção pelo humor”, observa Suely que, como Eva e Reinecke, dedica a montagem a Beatriz Segall.
De fato, o fluminense Mario Brasini (1921-1997) escreveu inúmeras comédias de costume, fazendo crítica social em tons de farsa. Mas, em Quarta-Feira, Sem Falta, Lá em Casa, seu maior sucesso, o equilíbrio entre drama e comédia foi perfeito. Escrita em 1976, a peça nasceu de forma casual: durante uma de suas excursões teatrais pelo interior do País, Brasini estava no bar de um hotel quando passou a observar o encontro de duas mulheres que pareciam velhas amigas. Durante todo o tempo em que estiveram juntas, porém, as duas senhoras discutiram acaloradamente, como se finalmente ajustassem contas. Ao cabo de uma hora de disputa, nova surpresa: despediram-se com afeto e, como se nenhuma ofensa tivesse sido trocada, uma disse para a outra: “Então, quarta-feira, sem falta, lá em casa”.
Impressionado, o dramaturgo (que também foi ator, diretor e até inventor, criando o ponto eletrônico no teatro, mas sem conseguir registrá-lo) escreveu compulsivamente, como era seu costume, uma peça que trata da importância da amizade. Em 1977, a primeira montagem estreou no Teatro Glória, no Rio, estrelada por Eva Todor e Henriette Morineau, com a direção de Gracindo Jr.
Com o sucesso, o texto chegou a ser montado na Suíça, três anos depois. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo na época, Brasini observou, em sua obra, uma unidade de tempo e espaço. “Trata-se de uma típica comédia de costumes e fala de um momento em que os amigos e inimigos vão morrendo ou se afastando e as pessoas se sentem irremediavelmente sozinhas”, comentou.
QUARTA-FEIRA, SEM FALTA…
Teatro Porto Seguro. Al. Barão de Piracicaba, 740. Tel.: 3226-7300. 6ª e sáb., 21h. Dom., 19h. R$ 70 / R$ 90. Até 25/11. Estreia 5/10
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.