Vencedor e vencido juntos, minutos depois de uma final, entre cervejas. Foi assim, em meio a um espírito olímpico, que Aurélio Miguel iniciou a celebração da conquista da medalha de ouro nos Jogos de Seul, em 1988. Ao lado de Marc Meiling, da então Alemanha Ocidental, ele bebia para facilitar a realização do exame antidoping – e também se divertia. “Fizemos uma pirâmide com as latinhas e até levamos uma bronca”, relembra, aos risos, o ex-judoca, em entrevista ao Estado.
A desenvoltura com que Aurélio fala do seu feito é a mesma exibida nos tatames há 30 anos, quando colocou o Brasil pela primeira vez no topo olímpico do judô. “É uma realização pessoal, mas depois transcende isso, pelo que a conquista também representa para as pessoas. É a realização de uma carreira”, avalia.
Até aquele 30 de setembro de 1988, o judô do Brasil acumulava quatro medalhas na história olímpica, mas nenhuma de ouro. O feito de Aurélio veio após uma promessa a colegas do atletismo. “Estava jogando truco com o (Adauto) Domingues, o Robson (Caetano) e outro colega, e avisei que podiam ficar tranquilos, porque no dia seguinte ia tocar o Hino Nacional”, diz.
Não era excesso de confiança, mas uma estratégia para acreditar que vencer era possível após um período de conquistas, mas também de percalços. Afinal, quatro anos antes, um desentendimento com Joaquim Mamede, então superintendente e futuro presidente da Confederação Brasileira de Judô, o impediu de ir aos Jogos de Los Angeles, mesmo tendo sido prata no Pan de Caracas, em 1983.
Mas se tornou uma chance para Aurélio realizar um raro intercâmbio para aquela época, com diversas passagens pelo Japão para treinos e participação em competições na Europa, em um circuito praticamente desconhecido no Brasil. Assim, chegou a Seul com um currículo recheado de êxitos, como o título do Pan de 1987 e o bronze no Mundial do mesmo ano.
No entanto, nesse mesmo ciclo sofreu o baque da perda da mãe e uma grave lesão no ombro direito, problemas que o levaram a cogitar até mesmo deixar o esporte. Superadas as dúvidas, vieram as novidades em Seul para quem disputava sua primeira Olimpíada aos 24 anos.
“No primeiro dia, fiquei encantado com a Vila Olímpica, com aquele monte de atração, percebi que andei demais. Aí decidi sair, fiquei enclausurado”, relata, contando que só mudou a postura no início dos eventos do judô, mas se fechou logo depois. “Fiquei mais nervoso na arquibancada do que o pessoal lutando. Fez mal, só foi bom para ver o ambiente. Não fui mais”, explica.
E Aurélio teve de esperar muito, afinal, a disputa do meio-pesado (até 95kg) foi acontecer apenas no antepenúltimo dia dos Jogos. “Acordei bem, fiquei assoviando o Hino Nacional. Mas quando cheguei perto do ginásio, deu aquele calafrio”, afirma, revelando que nem conseguia se sentar enquanto aguardava a sua estreia.
A difícil vitória, por decisão dos juízes, sobre o britânico Dennis Stewart lhe deixou em dúvida. “Será que me preparei direito?”, se questionou. Sim, pois passou na sequência pelo italiano Juri Faza e pelo islandês Bjarni Frioriksson, bronze nos Jogos de 1984. A vaga na final veio contra Jiri Sosna, da então Checoslováquia. “Percebi no olhar que ele não estava preparado para ir à uma final olímpica. E fui para cima”, relata.
A quinta medalha olímpica do Brasil no judô estava garantida, mas ainda não o ouro. E enquanto se concentrava e tentava se afastar do oba-oba, Aurélio relembrou uma avaliação do fisiologista Victor Matsudo. “Fiz exames antes da Olimpíada. E ele me disse que o meu VO2 volume de oxigênio máximo era de maratonista e que quando eu cansasse, o adversário já estaria morto”, relata.
A vitória do raçudo judoca se deu por yuko. “Acelerei a luta e, no terceiro minuto, ele estava cansado”, relembra Aurélio. “Foi um sonho, parecia que estava nas nuvens”, acrescenta o dono do único ouro conquistado pelo Brasil na Olimpíada de Seul.
HISTÓRICO – Com uma carreira marcada pelo ouro olímpico e também pelos conflitos com Mamede, Aurélio ainda faria mais, sendo medalhista de prata no Mundial de 1993 e de bronze nos Jogos de 1996. E teve seu feito de 1988 repetido por Rogério Sampaio (1992), Sarah Menezes (2012) e Rafaela Silva (2016).
Aurélio é o único brasileiro no Hall da Fama do Judô, tendo sido eleito um dos 50 melhores lutadores da história da modalidade. Também foi vereador em São Paulo por três mandatos consecutivos, de 2005 a 2016. Hoje, preside a Federação Universitária Paulista de Esportes e ainda atua no setor imobiliário.