Um juiz federal torna-se vítima de perseguição política na Venezuela, tem o filho morto em uma emboscada e procura refúgio no Brasil. Ao chegar, é explorado em trabalho análogo à escravidão e, sem alternativa, decide virar artista de rua. É o início da reviravolta. A muito custo, consegue revalidar o diploma no País e começa a trabalhar em mutirões da Justiça, voltados para legalização de imigrantes que, assim como ele, cruzaram a fronteira para fugir da crise venezuelana.
A história até parece roteiro de cinema, mas é o relato de Oswaldo José Ponce Pérez, de 52 anos, um dos milhares de refugiados que se estabeleceram em Boa Vista, onde o impacto do boom migratório se vê exposto em unidades de saúde lotadas e calçadas entupidas de barracas, colchões e redes. Pérez chegou em junho de 2015, antes de o fluxo apertar e, por isso, testemunhou as mudanças na capital de Roraima. Em 2018, mais de 15,9 mil estrangeiros pediram refúgio lá.
“O pessoal deixa a Venezuela por causa da crise humanitária. Ninguém quer sair do país, muito menos nessas condições. O problema é que Roraima não tem estrutura para receber essa migração em massa”, diz.
No Brasil, Pérez não teve vida fácil, mas conseguiu se estabelecer e hoje ajuda a regularizar a situação de outros refugiados. Trabalha, de forma voluntária, como conciliador na Vara Itinerante. Em junho, o Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR) fez um acordo de cooperação judicial com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), permitindo até que a documentação de processos seja em espanhol.
Venezuela
Por cinco anos, Pérez, então juiz federal, travou uma guerra política com generais e membros do alto escalão dos governos Hugo Chávez e Nicolás Maduro, segundo conta. Entre decisões que desagradaram a interesses políticos, se negou a desapropriar famílias que viviam em áreas ricas em mineração. “Sugeriram até que decretasse a prisão das famílias. Eu me neguei, seria contra meus princípios morais.”
De família tradicional, Pérez vivia com a mulher e quatro filhos em uma casa de alto padrão com piscina. Também era proprietário de fazenda de gados e carro importado. A perseguição começou em 2010, conta. Teve de responder a processo militar (sem ser militar) e seu veículo, um Camaro, foi incendiado em um ataque.
Em 2013, sofreu o maior dos golpes. O filho mais velho, de 24 anos, foi assassinado. “Foi uma emboscada. Deixaram meu filho jogado na estrada… Atiraram no carro e alvejaram ele com um tiro. Foi planejado, para fazer crer que era outro tipo de atentado”, diz.
“Eu estava lutando contra um sistema muito grande e praticamente sozinho. Decidi largar tudo, ou ia ser cassado e preso.” Primeiro, pediu afastamento por um ano e visitou o Brasil: “Vi que as condições estavam melhores”. Vendeu os bens por baixo preço, pediu exoneração e trouxe a família ao País – só uma filha ainda vive na Venezuela. Partiu de Ciudad Bolívar, a cerca de 800 quilômetros da fronteira – um dia de carro.
Brasil
O ex-juiz pediu asilo político em Boa Vista e procurou um novo emprego – com a moeda desvalorizada, o dinheiro que trouxe acabou rápido. Virou auxiliar de mecânico em uma oficina. Conta que trabalhava de domingo a domingo, das 7 às 20 horas, por R$ 50 por dia, mais o almoço. “Era sempre assado de panela, não tinha variação. Havia dias que nem davam refeição.” Lá, lavava a oficina, varria o quintal, carregava no braço peças de motor. “Era muito pesado.”
Em vez de receber R$ 350 por semana, passou a ganhar de R$ 30 a R$ 40. “Diziam que o movimento estava fraco, mas que iam ajeitar na segunda – mas a segunda nunca chegava. Quando percebi que estava em um trabalho escravo, pedi meus documentos e o dinheiro, mas me disseram que não iam dar porque seria para pagar o barraco onde eu morava”, diz Pérez, que fez denúncia no Ministério Público do Trabalho.
Nos dois anos seguintes, Pérez, que tem formação em violão clássico e toca harpa, viveu como artista de rua. “Sou agradecido à população de Boa Vista: muita gente me ajudou”, diz ele, que tocava em bares.
Hoje, ele mora de aluguel na capital e conseguiu revalidar o diploma de Direito. Em novembro, quer prestar exame para Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “A segunda etapa é adquirir a nacionalidade, como forma de agradecer à nação por ter me acolhido e protegido minha vida”, diz. “Quero prestar concurso para juiz federal e ser útil ao País.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.