Com o corpo envolvido em faixas e invadido por fios e tubos, Carlos*, de 15 anos, conseguiu piscar um dos olhos quando a avó, Conceição Cardoso da Silva, de 70, disse que o violino dele está esperando no quarto da casa em que cresceu na periferia de Aparecida de Goiânia.
“Também vou cozinhar muito macarrão com sardinha, tá?”, Conceição prometeu na visita ao neto na tarde de domingo (27/5), o único sobrevivente do incêndio que atingiu o alojamento 1 da ala “A” do Centro de Internação Provisória (CIP), instalado nas dependências do 7° Batalhão da PM na última sexta-feira (25/5).
O leito da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Estadual de Urgências da Região Noroeste de Goiânia Governador Otávio Lages de Siqueira (Hugol) é mais um endereço dramático do adolescente em estado gravíssimo sob a tutela do Estado de Goiás.
Nove adolescentes morreram queimados no incêndio provocado, conforme o governo, pelos adolescentes. Ao invés de tentar apagar o fogo, o menino abriu o chuveiro, abrigando-se ali até a chegada dos Bombeiros.
Amputação
Conforme a família, as queimaduras de 2° e 3° grau podem levar a amputação dos braços e das pernas. Em entrevista exclusiva ao Portal Dia Online, a avó não aceita o diagnóstico anunciado pelos médicos.
“Eu abro a porta daqui de casa e peço a Deus para que traga meu menino andando, de braços abertos para me abraçar, me beijar”, diz Conceição.
Em duas cartas enviadas para a avó, o adolescente promete não “mexer com drogas e roubar”, mas não abre mão de “usar as roupas” de que gosta e, disse que quando saísse, iria “passar a ir mais na igreja porque eu tenho muito que agradecer a Deus”.
Escrita com caneta preta no dia 15 de maio, o menino pede a Conceição que ela compre linhas “mais claras”, porque “fica mais bonito” as capas de crochês para filtros de barros que ele fabricava no Centro de Internação.
No texto, ele conta que está “fazendo jejum de manhã para ver se eu vou embora” e comemora que passou a dormir na cama de cima, saindo do corredor.
“Tadinho, ele era obrigado a ficar de olho em um fogo que os meninos colocavam no chão. Não podia deixar apagar”, conta.
“Agora eu tô dormindo na cama mais alta. Eu saí do corredor. Agora não preciso ficar de olho no fogo mais. KKKK. Agora só vou ficar deitado até no dia em que for embora. KKK”, escreve, antes de dizer que ama a sobrinha.
“Tô sentindo muita saudade de vocês. Gostei do perfume e da camiseta”, agradece, antes de escrever “ti amo”.
Levado à Igreja Congregação Cristã do Brasil desde pequeno pela avó, o menino não desgrudava os olhos do violino de um dos tocadores que entoava hinos.
O tio, Ronivon Cardoso, de 46, percebendo o interesse, deu um instrumento de presente ao garoto reconhecido pela família como sendo o jovem queimado de cueca, deitado no corredor no CIP em uma fotografia compartilhada nas redes sociais.
Um pouco trêmulo, mostra a fotografia do sobrinho no leito. “Ele está irreconhecível. Nem parece o menino alegre e esperto”, lamenta.
“Ele fazia aulas de violino na própria igreja, mas foi se distanciando do instrumento nos últimos meses”, lembra Ronivon, enquanto a avó mostra duas das quatro cordas arrebentadas do instrumento na última vez que o menino tocou.
O adolescente foi preso pela Rotam, escondido na casa de uma tia, depois de participar de um roubo em 7 de fevereiro de 2018. Acabou assumindo toda a culpa. Quando a juíza perguntou se ele tinha consciência de que seria condenado, o menino chorou.
A partir do dia da apreensão, a vida da família simples, sem condições financeiras de pagar advogado, se resume a preocupações. “Ele foi levado para o 1° DP, ficou um mês na cela com criminosos da pesada, maiores de idade”, denuncia o tio.
“Lá, eles rasgaram a Carteira de Trabalho dele para fumar maconha. É errado um menino ficar no meio de adultos. E foi a primeira vez que ele foi preso”, ressalta.
Cerca de um mês depois, segundo a família, o adolescente foi levado para o CIP, que é provisório. “Mas ficou lá até o dia daquela tragédia”, lembra a avó.
Espancado
Em cada visita, o menino relatava as barbaridades que passava. Do dia em que, ao deixar escapar uma frase vetada entre os menores, foi espancado e colocado de cabeça para baixo. Ele teria chamado, numa brincadeira, a mãe de um colega de égua.
Das noites que tinha de ficar velando um foco de fogo no canto da cela, do odor, da insalubridade e a escuridão. Dos gritos da madrugada, dos olhares, do abandono. Não por acaso, toda vez que o menino via a avó nos dias de visita, a abraçava com muita força. “E sorria, me cheirava, me beijava. Pedia para que a gente orasse junto”.
Antes de se despedir da reportagem, Conceição lembra: “A enfermeira de lá me contou que meu neto cantava um hino quando levaram ele para o hospital.”
*O nome do adolescente foi trocado em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).